terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um grande mistério sobre o nada

 



Às vezes, o vazio da existência é chamado de conhecimento 
Se eu emparelhar os horizontes das discussões insossas que atravessam os questionamentos de ninguém 
Talvez eu ganhe um título 
Talvez eu dê uma palestra 
Talvez eu venda cursos
Talvez me digam que sei escrever 
Mas, se eu souber mexer nos silêncios 
Batucar com jeito, 
Arrematar sorrisos, 
Ensinar o bê a bá,
Dentro de mim (ou de alguém)
Algum mistério importante seja fatalmente resolvido 
Como cantam os doces sábios,
Mistério sempre há de pintar por aí







domingo, 19 de janeiro de 2025

Súbita e lenta

 



Agoniza mais uma estrela que caiu na beira do rio
Esfarela-se, treme e evapora
Derrete, sucumbe, grita e chora
Infeliz dessa estrela que em algo acreditou
Nunca lhe agradeceram pelas noites que iluminou
Pelos risos concedidos
Pelos corações que tocou
Deixaram-lhe sozinha a morrer
Entendeu ela que a queda estava programada
Data, dia e hora e marcada: 1 de janeiro 
Melhor sentir a dor
Súbita e lentamente a estrela se transformou
Está em cada pedra, em cada quintal escondido
Está entre os ingás e as juremas
No chão batido e nos espinhos
Nas pequenas ondas do rio
Fragmentos seus, remanescentes de outrora
Talvez brilhem de outro jeito rio afora
No nascer de outras eras
Quando ela, finalmente,
Se recompor

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Insólita

 




Ontem eu soube que se alguém cair em um buraco negro, já era. O jeito vai ser passar a vida inteira caindo e caindo. Ao se olhar para cima, a pessoa verá toda a história do universo. Às vezes eu fecho os olhos e vejo a minha história passando, sinto a queda e toda a repetição dos fatos já conhecidos, selados, vividos.

Vejo que, tendo caído em incontáveis buracos, só me resta apreciar a vista. Não conto os passos que me levam pelo labirinto do bairro. Tenho-me permitido afundar na cama, dormir sem pausa, comer às vezes, esvaziar a carteira de cigarros. Ao final da minha rua descobri um açude, assim como descobri que o vento que sopra das serras faz o mesmo barulho que o vento que sopra do mar. Quando andei na praia detestei, porque estava cheia de gente e eu não podia chorar.

Espero a igreja abrir para conversar com o padre. A inteligência artificial gosta de dar diagnósticos, mas não entende o que eu falo e mistura os acontecimentos. O psiquiatra dá dicas, o psicólogo escuta. A cartomante, eu não ouvi. Não quero pagar para ouvir o que já sei, não quero pagar por humilhação. Essa já se recebe de graça.

Desisti de explicações, de entendimentos, de qualquer coisa que faça um elo entre mim e o que passou. Soltei os meus barcos, queimei portos e pontes. Tento colocar tinta no cinza que restou, mas eu gosto do cinza. O cinza é de verdade.

De vez em quando lembro do teto alto e branco do hospital. Eu poderia ser paciente se quisesse, se realmente os 20 mg não segurassem esse nó atado que está aqui desde 94. A vida é o bestiário, o teste incoluto para medir as nossas forças. Augusto dos Anjos já tinha me avisado, o beijo é a véspera do escarro. O jeito é apreciar a queda - e lembrar que eu tenho jeito.



terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Queres me conhecer?





Queres me conhecer?
Sou transparente, repetitiva e angustiada. Risquei o quadro de outra vida, feiticeira no cariri. Longe dos livros, sou farsa, porque nada me resta de bom a dizer. Nada que abale a sua leitura, entende? Ainda assim, é como se não existisse outro mundo além daqui, deste corpo que agora conheço. 
Eu faço bulas e guias do meu aspecto físico e psicológico, não tem mistério. A mulher de olhos verdes, vestido vermelho e anel turquesa ao mar em noite de lua cheia, pronto. Eu só sei ser isso. Fora da folha até inventam outras narrativas. Deixe-me apagar as memórias de ontem, os meus absurdos e insistências. Deixe-me ser quantas eu precisar.
Eu tenho vergonha e por isso me apaguei e mudei os cabelos. Escuto mais, vejo mais, guardo mais de tudo. Sons e informações. Foi-se o tempo de perguntar e não achar, porque não é perguntando que se acha. Se encontra vendo e para ver é preciso calar.
E calada eu gosto de estar. Não ser vista, apenas quieta, lapidando uma novidade.
Desculpe, dessa vez eu não quero que seja bom. No final de cada texto sempre vem a conclusão que fisga. Então, que eu seja o antitexto, que eu seja a antinarrativa, a anti-história contada, o veneno na língua do povo, o colírio desta carta. Obrigada por chegar aqui, outra vez.





segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

O peso do meu útero





Mulher, eu, fadada ao peso do meu útero
E de todo o sangue coagulado do mundo



Talvez os peixes possam gritar





E se os peixes pudessem gritar?
Eu não mais os comeria e assim seria menos hipócrita, mais firme.
Se dependesse de mim, mais nenhuma gota seria derramada e viveríamos em estado de plena paz
Eu choro todos os minutos pelos animais, tenho-me humana, feroz, ferida, cicatriz
Bardott, espere por mim
Talvez os peixes possam gritar


domingo, 29 de setembro de 2024

Inteiramente humana

 



Ora feliz, em muitas horas, triste
Humana.
Incapaz, caixa, rótulo, insana
Palavra cortante que espalha o fio da trama
Me joga fora que na água do balde eu vou embora
E continuo a existir
Longe de análises combinatórias, diferente do que se espera
Lendo o mundo com imperfeições
Mulher com a bestialidade de uma fera.
Igual a todo mundo,
Humana.