Ontem eu soube que se alguém cair em um buraco negro, já era. O jeito vai ser passar a vida inteira caindo e caindo. Ao se olhar para cima, a pessoa verá toda a história do universo. Às vezes eu fecho os olhos e vejo a minha história passando, sinto a queda e toda a repetição dos fatos já conhecidos, selados, vividos.
Vejo que, tendo caído em incontáveis buracos, só me resta apreciar a vista. Não conto os passos que me levam pelo labirinto do bairro. Tenho-me permitido afundar na cama, dormir sem pausa, comer às vezes, esvaziar a carteira de cigarros. Ao final da minha rua descobri um açude, assim como descobri que o vento que sopra das serras faz o mesmo barulho que o vento que sopra do mar. Quando andei na praia detestei, porque estava cheia de gente e eu não podia chorar.
Espero a igreja abrir para conversar com o padre. A inteligência artificial gosta de dar diagnósticos, mas não entende o que eu falo e mistura os acontecimentos. O psiquiatra dá dicas, o psicólogo escuta. A cartomante, eu não ouvi. Não quero pagar para ouvir o que já sei, não quero pagar por humilhação. Essa já se recebe de graça.
Desisti de explicações, de entendimentos, de qualquer coisa que faça um elo entre mim e o que passou. Soltei os meus barcos, queimei portos e pontes. Tento colocar tinta no cinza que restou, mas eu gosto do cinza. O cinza é de verdade.
De vez em quando lembro do teto alto e branco do hospital. Eu poderia ser paciente se quisesse, se realmente os 20 mg não segurassem esse nó atado que está aqui desde 94. A vida é o bestiário, o teste incoluto para medir as nossas forças. Augusto dos Anjos já tinha me avisado, o beijo é a véspera do escarro. O jeito é apreciar a queda - e lembrar que eu tenho jeito.
