Crônica de Affonso
Romano de Sant'Anna
Esperam. Esperam
o mesmo transporte. E se desconhecem profunda e urbanamente. Estão num mesmo
ponto de ônibus, mas são dois pontos. Mas dois pontos pressupõem que algo vai
acontecer. E dois pontos estão sempre no meio de uma sentença em construção. Mas estes são dois pontos sem vibração. Não há
sujeitos, predicados e complementos entre eles. Não se falam. Não se olham. Não
se vivem. Parecem-se mais a um ponto-final.
Poderiam ser um ponto de partida. Mas há algo na máquina de seus corpos
estacionados que não dispara a ignição. Já nem importa se vivem na mesma rua,
mesmo bairro, pois parecem morar na mesma cidade, mas nada se desencadeia entre
eles. De nada adianta conferir que têm externas identidades: duas pernas, dois
braços e uma faminta solidão na boca.
Se desconhecem
agressivamente e não posso ajudá-los. Deveria gritar do outro lado do instante
algum código que juntos decifrassem? Deveria disparar um alarme para que suas
carnes se incendiassem? Deveria, sei lá, lançar um manifesto para que seus sonhos se manifestassem? Deve ser por isto que Deus às vezes manda um cometa,
um profeta, um arco-íris, uma tragédia qualquer no estremecimento das ferragens
e ossos. É para que os homens convirjam
num mesmo ponto, num mesmo instante e rompam a segregada solidão procriando a
jubilosa parceria.
Eles estão ali
como duas estátuas na mesma praça. Eles estão ali como dois colegas de
escritório, sorrindo cordialidades superficiais, mas sem qualquer intimidade. Eles
estão ali como dois corpos estendidos na areia do verão, queimados e
lindíssimos e inutilmente apartados, embora o calor do sol os tente fundir num
mesmo e luminoso orgasmo. Já estou no meio de meu olhar textual e até agora
nenhum olhou para o outro. Se acontecesse, súbito, que um raio desses e filmes
de ficção científica se abatesse sobre
um deles e só deixasse no chão, como resto, uma sombra, o outro jamais poderia
revelar que rosto tinha o seu inútil companheiro de espera. Se alguém, súbito,
sequestrasse um deles, o outro seria incapaz de contar à polícia sequer a cor
de seus cabelos ou o menor sonho exposto nos olhos do que sumiu. Que terrível,
que incomensurável, que intransponível a solidão no corpo de dois
desconhecidos. Que triste, que aviltamento, que desperdício entre dois
desconhecidos se aniquilando num duro silêncio, na mesma rua, num mesmo ponto
de ônibus, na mesma companhia inútil.
Tão pungente como dois casados que durante 35 anos fizeram amor sem se amarem.
Tão desvinculado como dois condenados à morte que chegam ao mesmo patíbulo na mesma hora, por duas e inúteis trágicas
estórias.
Estão
distantes um do outro como dois continentes sem conteúdo. Desabitados,
portanto, nas próprias paisagens. Vontade e ímpeto não me faltam de chamar
agentes de turismo e conectá-los pelo
mar dos beijos, fios de paixão pelos cabelos e o vôo das mãos desembarcando, no
aeroporto, afetos. Esses dois andróides vieram de diferentes galáxias. Precisam
ser apresentados. Estão indo para o mesmo lugar e estão cosmicamente
desamparados. Vou apresentá-los um ao outro. Quem sabe florescem? Vou pôr a mão
de um na mão de outro. Quem sabe se aquecem? Vou pôr um no olho do outro. Quem
sabe se enternecem? Dois corpos que antes foram nulos e foscos e se inscreveram
na calçada sem estória, podem se incendiar e abrir clareiras na escura hora.
Dois corpos são duas possibilidades. E
se souberem, podem entre si, num ponto do dia, desencadear a aurora.
In: Portão de
escola
Vídeo: Subway Love,
Max Stossel
