segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Um homem, uma mulher

Crônica de Affonso Romano de Sant'Anna


Passo por uma rua e vejo um homem e uma mulher. Não se conhecem e estão parados ao lado um do outro num ponto de ônibus. Cada um olha para um lado, distraídos, fechados em sua imaginação e problemas. Não adianta descrever-lhes as características físicas, suas classes sociais e idade - São simplesmente um homem e uma mulher. Inúteis entre si. Cada um é cada qual, cada um é cada onde, cada um é cada como, cada um é cada quando, cada um é cada. E se ignoram. Não sabem que acabei de vê-los. De vê-los no passeio do meu texto. Devem estar ali há uns desperdiçados quinze minutos, à toa. À toa como uma gazela à toa à beira do lago que não vem. À toa como um agricultor à beira do verde que não vem. À toa como o astrônomo fitando a estrela que não vem.
Esperam. Esperam o mesmo transporte. E se desconhecem profunda e urbanamente. Estão num mesmo ponto de ônibus, mas são dois pontos. Mas dois pontos pressupõem que algo vai acontecer. E dois pontos estão sempre no meio de uma sentença em construção.  Mas estes são dois pontos sem vibração. Não há sujeitos, predicados e complementos entre eles. Não se falam. Não se olham. Não se vivem. Parecem-se mais a um ponto-final. Poderiam ser um ponto de partida. Mas há algo na máquina de seus corpos estacionados que não dispara a ignição. Já nem importa se vivem na mesma rua, mesmo bairro, pois parecem morar na mesma cidade, mas nada se desencadeia entre eles. De nada adianta conferir que têm externas identidades: duas pernas, dois braços e uma faminta solidão na boca.
Se desconhecem agressivamente e não posso ajudá-los. Deveria gritar do outro lado do instante algum código que juntos decifrassem? Deveria disparar um alarme para que suas carnes se incendiassem? Deveria, sei lá, lançar um manifesto para que seus sonhos se manifestassem? Deve ser por isto que Deus às vezes manda um cometa, um profeta, um arco-íris, uma tragédia qualquer no estremecimento das ferragens e ossos. É para que os homens  convirjam num mesmo ponto, num mesmo instante e rompam a segregada solidão procriando a jubilosa parceria.
Eles estão ali como duas estátuas na mesma praça. Eles estão ali como dois colegas de escritório, sorrindo cordialidades superficiais, mas sem qualquer intimidade. Eles estão ali como dois corpos estendidos na areia do verão, queimados e lindíssimos e inutilmente apartados, embora o calor do sol os tente fundir num mesmo e luminoso orgasmo. Já estou no meio de meu olhar textual e até agora nenhum olhou para o outro. Se acontecesse, súbito, que um raio desses e filmes de ficção científica se abatesse  sobre um deles e só deixasse no chão, como resto, uma sombra, o outro jamais poderia revelar que rosto tinha o seu inútil companheiro de espera. Se alguém, súbito, sequestrasse um deles, o outro seria incapaz de contar à polícia sequer a cor de seus cabelos ou o menor sonho exposto nos olhos do que sumiu. Que terrível, que incomensurável, que intransponível a solidão no corpo de dois desconhecidos. Que triste, que aviltamento, que desperdício entre dois desconhecidos se aniquilando num duro silêncio, na mesma rua, num mesmo ponto de ônibus, na mesma companhia  inútil. Tão pungente como dois casados que durante 35 anos fizeram amor sem se amarem. Tão desvinculado como dois condenados à morte que chegam ao mesmo patíbulo  na mesma hora, por duas e inúteis trágicas estórias.
Estão distantes um do outro como dois continentes sem conteúdo. Desabitados, portanto, nas próprias paisagens. Vontade e ímpeto não me faltam de chamar agentes  de turismo e conectá-los pelo mar dos beijos, fios de paixão pelos cabelos e o vôo das mãos desembarcando, no aeroporto, afetos. Esses dois andróides vieram de diferentes galáxias. Precisam ser apresentados. Estão indo para o mesmo lugar e estão cosmicamente desamparados. Vou apresentá-los um ao outro. Quem sabe florescem? Vou pôr a mão de um na mão de outro. Quem sabe se aquecem? Vou pôr um no olho do outro. Quem sabe se enternecem? Dois corpos que antes foram nulos e foscos e se inscreveram na calçada sem estória, podem se incendiar e abrir clareiras na escura hora. Dois corpos são duas  possibilidades. E se souberem, podem entre si, num ponto do dia, desencadear a aurora.

In: Portão de escola

Vídeo: Subway Love, Max Stossel