segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A casa do olfato




Um, dois, três, seis segundos, quem sabe, até as partículas chegarem ao cérebro e mandarem a mensagem. É a pessoa que está aqui. A pessoa inteira, de corpo, alma e cheiro. A presença completa que invade as cavidades entre os olhos e a boca para avisar da existência de outro indivíduo. Eu sei sobre as digitais, pesquiso sobre a íris, ouvi falar sobre a disposição das veias no braço, acredito na singularidade da palma da mão, mas, me encanta mesmo a coisa química e única do cheiro. Todo esse fascínio faz com que eu lembre que sou apenas um animal no mundo, cheio de instintos e necessidades primárias, assim como qualquer outro ser vivo. Não me vejo tão diferente das bactérias e nem dos macacos, quando somos todos partículas e profundezas.
Não me desapego da memória de perfumes, lembro de nomes e marcas, mas gosto mesmo dos bons cheiros esquecidos, como o cheiro do joelho, o cheiro do pé em dias suportáveis ou o cheiro do pescoço que vem de quem eu amo. Ao mesmo tempo, desconheço o meu cheiro, não sei como é a memória olfativa que se pode ter de mim. Desejo alguém que vicie caso cheire meu pescoço, porque esse vício eu conheço. Ouvia canções de saudade sobre o cheiro deixado dentro de um livro ou em um lençol, mas me contentava em não sentir, não viciar, não querer beijar toda a extensão da geografia alheia. Podia me imaginar em abstinência, estremecendo, caso sentisse, ao andar na rua, qualquer partícula de oxigênio adulterada que lembrasse a causa da minha embriaguez. 
O cheiro de alguém virou a minha casa, de modo que basta a presença a poucos metros de mim para que eu sinta: esta pessoa realmente está aqui.  Chego perto, e, ao sentir, penso: isso está dentro de mim. Imagino as partículas entrando, caminhando pela minha cabeça, dançando, carregando outro ser humano para meu corpo, alimentando o vício, preenchendo minha memória de sorrisos, detalhes, instinto e torpor. Bebo o suor, como se não tivesse juízo e horas depois ainda posso perceber o cheiro em meu lençol, no travesseiro e em meu próprio corpo.
Existem milhões de casas, mas nenhuma é a casa formada com partículas específicas que anseiam pelo mar, pelos sons e pelo silêncio. A alquimia do DNA alheio construiu pontes entre minhas narinas e meu coração. O que quer que aconteça com a minha morada do cheiro, ainda terei memórias etéreas e inacessíveis.  Assim, deixo as partículas fluírem calmamente por rotas e veias.