É preciso que
se atravesse a calçada para se deparar com outro universo. Talvez assim o mundo
desapareça e com ele as suas mazelas. Os únicos registros que existirão serão
os Akáshicos. Esqueceremos a internet e a loucura que a habita. Fotos, cartas,
recordações, tudo isso evaporará junto ao éter.
Estaremos
todos imersos no cosmos, perdidos, estagnados na solidão dos astros e que assim
seja até que nossa humanidade se reestabeleça. Os olhares mortais dos psicopatas,
as cadeias infernais, a carne que alimenta nossos vícios, os animais indefesos
e abatidos, as injustiças, as loucuras, a ganância que mata, a loucura que
despreza as mulheres, o mundo imundo que foi construído. Tudo isso sumirá.
Basta que a ponta
do dedão de pé toque a rua. Um toque e o mundo sumirá. O mundo das perversões e
dores, o mundo dos sofrimentos. No auge da minha angústia eu só enxergo os
absurdos que me rodeiam, as coisas abomináveis e inomináveis. Basta também um
toque e o pior do mundo vem aos meus olhos. Na televisão um filme de terror
é narrado com complacência e tranquilidade.
Nascemos e
aqui estamos. Fazendo o que de nossos corpos? Aliciando ou deixando-nos aliciar
pelos vícios? Escolhemos comer a carne do outro e sorrimos para isso. Pobres
são os nossos pequenos companheiros de planeta que sofrem apenas por estarem
aqui, em nossa companhia, ou, pobres somos nós? Monstros miseráveis que somos.
Esse ser que encaramos no espelho pensa ou padece? Pensa ou faz padecer?
Ouvi gritos
e louvores, vi imagens que gostaria de apagar da memória. No entanto, apenas observei. Foi então que percebi:
bastava atravessar a rua e tudo sumiria. No meu caminho de formiga solitária
bastaria um passo e o mundo sairia do lugar.
Chegando, finalmente, à margem do grande rio, o Amor avistou três barqueiros que estavam indolentes, recostados às pedras.
Dirigiu-se ao primeiro:
- Queres, meu bom amigo, levar-me para a outra margem do rio?
Respondeu o interpelado, com voz triste, cheio de angústia:
- Não posso, menino!
É impossível para mim!
O Amor recorreu, então, ao segundo barqueiro, que se divertia em atirar pedrinhas ao seio tumultuoso da correnteza.
- Não. Não posso.
Respondeu secamente.
O terceiro e último barqueiro, que parecia o mais velho, não esperou que
o Amor viesse pedir-lhe auxílio. Levantou-se tranqüilo, e,
estendendo-lhe bondoso a larga mão forte, disse-lhe:
- Vem comigo, menino!
Levo-te sem demora para o outro lado.
Em meio da travessia, notando o Amor, a segurança com que o velho barqueiro navegava, perguntou-lhe:
- Quem és tu?
Quem são aqueles dois que se recusaram a atender ao meu pedido?
- Menino - respondeu paciente o bom remador, o primeiro é o Sofrimento.
O segundo é o Desprezo.
Bem sabes que o Sofrimento e o Desprezo não fazem passar o Amor.
- E tu, quem és, afinal?
- Eu sou o Tempo, meu filho - atalhou o velho barqueiro.
- Aprende para sempre a generosa verdade.
Só o Tempo é que faz passar o Amor!
E continuou a remar, numa cadência certa, como se o movimento de seus
braços possantes fosse regulado por um pêndulo invisível e eterno.
Sofrimento, Desprezo...
Que importa tudo isso ao coração apaixonado?
"O Tempo, e só o Tempo, é que faz passar o Amor."