segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Para quando ela voltar



Numa aldeia cercada de campos e montes, sem tempo e longe de tudo, um romance aconteceu. Leal é um dos personagens que viveu esse romance, a mulher que o fez sonhar foi-se embora no dia em que os dois se casariam. Ele quase enlouqueceu, quis morrer, esteve entregue à dor, de modo que hoje o seu coração quase não bate e é cheio de cicatrizes. É como um Florentino Ariza sem esperanças.
Dora é o nome da mulher que ele tanto amou. A história dos dois é antiga e acinzentada. Quando foram coloridos, tinham 16 anos de idade. Conheceram-se na escola da aldeia em que viviam. O alvoroço do primeiro amor tomou conta dos dois. Amavam com total intensidade, tudo ao redor era magia plena. Viviam esse amor em cenários quase oníricos. Tinham um caderno no qual escreviam um para o outro tudo o que sentiam. Brigavam e se adoravam. Até que os anos foram passando e Leal perdera o carinho de sempre. Dora sofria com isso. Sofria com a pressão, com as mudanças de humor, com a falta de compreensão, com a aparente frieza e com o gosto dele pela bebida.
Ela tentou conversar, tentou fazê-lo entender, pediu para que ele não bebesse tanto, mas, ele não mudou. E ela foi embora com outro. O jovem homem não assimilou a ausência e esperou que ela voltasse. Na casa em que ele havia construído para os dois, tudo era escuro. A sua fuga era o trabalho, e tudo o que ele fazia era esculpir santos e outras figuras. Até que um dia ela voltou, bateu à porta e o acordou. Surpreso, ele achou que era uma volta, mas era uma despedida. Conversaram e pela última vez se amaram com a mesma intensidade de antes. Encostado à porta, ele viu ela indo embora pela rua. Quis correr, mas não conseguia. Não sabia que seria a última vez. 
Nos dias seguintes, ele esperava que alguém batesse à porta outra vez, mas tudo era silêncio. E é aí que a saga do coração começa: foi quando ele entendeu que ela não voltaria mais. O apetite fora perdido, e os dias eram divididos entre choro e sono. Geralmente acordava de madrugada e a primeira coisa que pensava era: Dora não está mais comigo.
A pior noite foi quando sonhou com ela. Estavam os dois sozinhos numa praia deserta e enluarada. Havia um píer para o mar e vários lugares altos sobre a areia. Então ele escalou a areia e a encontrou lá, sentada, observando a enorme lua cheia. Pôde abraçá-la. Foi tão real que o rapaz acordou com os olhos cheios de lágrimas e passou a madrugada insone. Os olhos abertos no escuro da casa. Não sabia se rezava ou se morria. 
Meses passaram e a vida parecia voltar ao normal. Agora Leal queria se jogar nos braços de outras mulheres e sentir outros corpos. No entanto, sempre se lembrava de Dora. Eram os olhos azuis e grandes, os cabelos loiros, o corpo esguio, o lindo sorriso, a magia que havia em torno dela e tudo o que ela representava. Para ele, ela era o Sol da sua vida. E, perdido, entre lembranças, pintou um lindo quadro de Sol e o colocou em sua sala. Assim nunca esqueceria dela.
 Até que reencontrou o Sol numa rua da vila. Ela sorriu, mas virou o rosto e foi embora mais uma vez. Estava diferente, e parecia estar grávida! Ele não podia acreditar, que, alguns meses depois de tê-lo visitado, ela já estaria grávida! Isso precisava ser confirmado. Outra pequena morte acontecia em seu coração. Então foi conversar com as antigas amigas de Dora para saber o que havia acontecido.
Descobriu que ela havia encontrado outro amor e morava numa vila muito, muito distante. Estava de volta apenas para visitar a família. Outra vez lágrimas. Como era possível ela ter esquecido aquele amor? Era possível? Então ele escreveu uma carta para ela contando todas as suas agruras. Tinha esperança de que, se contasse tudo o que sentia, poderia esquecê-la de uma vez. A resposta veio clara e dolorida. Sim, ela era feliz. Sim, ela também havia sofrido, no entanto, já encontrara outro amor, vivia um outro momento de sua vida e realmente estava grávida! O amor antigo fora esquecido e guardado em seu devido lugar. Louco, Leal ainda escreveu outras cartas, mas não teve respostas. Respostas que ele esperou avidamente. 
Não havia mais o que fazer. Ela não voltaria nunca mais. Tudo o que lhe restava eram memórias e sonhos. Havia semanas que sonhava com ela todos os dias, acordava entre feliz e aturdido. Em outros momentos, o perfume que ela usava vinha em sua memória. Tudo o que tinha era uma caixa com fotografias, poemas, uma aliança antiga e vidros de perfume. Apenas uma caixa. Ele sabia que parecia louco e já não aguentava mais. Ele deixou outras mulheres entrarem em sua vida. Se apaixonava, gostava delas, mas sempre, sempre sentia que as estava enganando. Não achava justo ser amado e ao mesmo tempo não ter o coração livre. E assim ele sofria mais uma vez.
Acendia velas, rezava, procurava oráculos. Tudo para esquecer. Queria ser feliz e amar. Com o tempo a memória foi se acalmando, e a chama antes forte, agora era branda. Esse amor era como fogo. Às vezes ficava forte e o consumia, e às vezes o deixava em paz, mas nunca era apagado. Muitas vezes, quando passeava, não conseguia sequer esquecer as ruas pelas quais havia passeado com ela. Lembrava até do vestido florido e sentia raiva de si mesmo por lembrar e por não ter sido o homem que Dora merecia que ele fosse. Se pudesse, apagaria tudo da memória.
Deus não era justo. Como ela poderia amar alguém e ele não? Porque somente a ela foi dada a dádiva do esquecimento? O que lhe faltava para esquecer? E assim, foi se acomodando. Já estava acostumado com as pedras do peito e com o espaço sempre ocupado em seu coração. Desistiu de brigar com Deus e com o mundo, amava mesmo era a solidão. Sabia que viveria assim até o fim dos seus dias.
Um dia, viu duas crianças sozinhas na rua. Um menino, Francisco, e uma menina, Clara. Estavam sujas e assustadas. Ele conversou com elas e descobriu que eram órfãos e estavam fugindo dos maus tratos de uma tia. Vieram parar ali porque já estavam sem forças para andar. Comovido, deu abrigo para as crianças. O tempo passou e eles foram ficando. Os três foram construindo um laço de amor genuíno e em pouco tempo Leal já era chamado de pai. Faria tudo por aquelas crianças e as amava como se fossem seus filhos.
Clara não parava de olhar para o quadro de Sol. Dizia que aquele quadro a fazia lembrar de sua mãe. O que era uma surpresa para Leal, porque os meninos não conseguiam falar de suas origens. Até que disseram o nome de sua mãe: Dora. Uma mãe linda como o Sol. Ela morreu e eles ficaram sob os cuidados de uma tia, que era uma mulher terrível. Lembraram também que sua mãe falava que o verdadeiro pai deles era um homem muito bom, que era o único homem que havia amado de verdade e que estava muito longe deles. Leal apenas sorriu e pensou: de alguma forma, ela voltou. Envelheceu feliz, porém nunca mais amou uma mulher novamente.



Agora vamos ter os girassóis do fim do ano e o calor vem desumano
Tudo irá se expandir, crescer com as águas. Quiçá, amores nos corações
E um santeiro, milagreiro prevê a dor de terceiros e diz que a vida é feita de ilusão
Aquela que um dia o fez sonhar se foi com o outro
No dia em que os dois se casariam por amor
Ele aluou. Hoje o seu pesar cintila nos varais
Usou as sete vidas e não foi feliz jamais
Toda a imensidão passou pela vida e foi cair na solidão
Mais um santo para esculpir é o que lhe vale pra evitar que o rancor suas ervas espalhe

Milagreiro - Djavan