domingo, 20 de março de 2016

Fluxo


Acorda cedo e pega o ônibus lotado, são 40 minutos para chegar aonde quero. É de manhã e não importa se chove ou se faz calor, é tudo um inferno. É dia de estudar alemão. Wie heissen Sie? Oi? Calma. A minha idade? Ah... deixa eu ver aqui como se diz, acho que é einsundzwanzig.  Por favor, professor, não me pede pra ler esse negócio.
Tem o Timeu de Platão para traduzir. E eu entendo alguma coisa? Ah, já fez a parte de Cícero? É, eu tentei, mas não deu tempo de fazer tudo. Eu cochilei de tarde. Chego na aula e me perguntam se eu to achando difícil. Eu, ingênua balanço a cabeça, digo que sim. Escuto que estou mentindo. Um alvoroço começa na sala, todo mundo quer falar. Eu até defendo meu ponto de vista, mas sei lá, tenho preguiça, vai ver to mentindo mesmo. Quer dizer, é mentira mesmo, ok. Próximo.
Acordei enjoada hoje, não acredito. Minha cabeça tá doendo, não acredito. O que é isso? Deve ser o remédio que eu to tomando. E vamos lá outra vez. Cólicas, dores pelo corpo e, pelo meu humor, eu posso matar uma pessoa a qualquer momento. Juro que vou ficar quietinha na aula de hoje. Quando o professor disser pra eu responder mais alto eu juro que não vou dizer: tá bom, da próxima vez eu grito. Por que diabos eu disse isso? Meu Deus...
Hoje vamos aprender o Aoristo. Eu traduzo no presente ou no passado? Mas ele não é um tempo, é um aspecto. Depende. Olha, se for uma narrativa é passado, o que importa é o momento. Professor o particípio dá ideia de anterioridade, né? O particípio aoristo, ele me corrige. Tudo bem... É igual ao ablativo absoluto, que também é igual ao genitivo absoluto. O quê? Repete por favor. Quem diz que entendeu está mentindo. E eu disse que entendi. Olha eu mentindo outra vez.
Perdi três aulas essa semana por causa dos enjoos. Vou ao médico, e ele me diz que sou enjoada. Doutor, ainda bem que você não pode ler meus pensamentos, viu? Realmente eu fiquei muito enjoada, mas foi por causa desse maldito remédio que o senhor passou. Ah, existem problemas piores que o meu? E as aulas que eu perdi? Até nunca mais seu... Calma, querida, não chora. Quer saber, vou comprar umas coisas gostosas para comer e escutar Led Zeppelin, vai ajudar. Nossa, e esse tanto de coisas para arrumar aqui? É, vou ter que sair do alemão.
Que pena, eu estava gostando do professor e fazendo amizade com o pessoal da sala. Só que tem as duas extensões, e as disciplinas, e a dúvida entre Sêneca e Horácio. Pra que comprar livros sobre Marco Aurélio e depois descobrir que o cara, um imperador romano, escreveu em grego? Só pra gastar a mesada mesmo. Depois eu leio. Professor, responde meu e-mail, por favor. Então, escolha Horácio mesmo. Certo, caça aos artigos. Professor, como se traduz um partícipio futuro passivo? Como se traduz um subjuntivo? Tudo no presente. São mais de 50 formas de verbos. Ok. 
Mudou o documento do estágio, agora tem que assinar tudo de novo. Segunda esteja na coordenação. Professor querido assina aqui, por favor?  Oi, me ajuda no Latim. Bom, como está o seu levantamento? Ah, vamos ver os casos aqui. Ver tudo de novo? É, de novo... Olha você sabe bastante latim. Na outra semana: você não sabe de nada, aquilo era um ablativo absoluto. Como alguém chega no latim VI desse jeito?  Mas toma essas folhas aí, e o meu texto e faz o levantamento pra mim. Oi? Desculpa, mas não dá. Não dá mesmo. E quem é aquele rapaz passando no corredor? Acorda menina, foco.
Meus dois gatos não param de brigar. É uma agonia constante, e de repente, às três da manhã, uma amiga me liga e eu penso que o mundo acabou. Mas não acabou não, ela só não sabia que rapaz beijar. Ai que saudade desse tipo de dúvida. Amiga, olha só, eu to com dor de cabeça, minha vida tá uma bagunça, mas, beija aí quem você quiser, aproveita a vida. Amo você, beijos. E amo mesmo, o que seria da vida se não fossem os amigos?

sábado, 19 de março de 2016

Dançando com peixes


O mistério dos peixes é o mesmo mistério que mora em mim. É o meu ascendente, é a minha essência e é tudo aquilo que eu abomino com todo meu coração. É um vício louco, é uma droga, é o que me faz perder os sentidos e errar de caminho. É o mergulho mais insano e o amor mais odiado.
Etéreo, onírico, misterioso, turvo e cristalino. Toma o meu coração e faz dele o que deseja. Ilude. A única criatura que me ilude. A única criatura que consegue me enganar, a única criatura que me fere com um sorriso no rosto.
Aquela criatura que promete amor e some com a mesma rapidez com que apareceu. É aquele ser maldito que surgiu em minha vida, me encheu dos piores sentimentos e mesmo depois de ter ido embora invadiu meus sonhos, destruiu o meu ego e passou por mim com uma gargalhada infernal.
Exatamente por ser aquilo que não consigo desvendar, é o ser que mais me fascina. Meus olhos brilham quando vejo a sua dança. Quero dançar também, esqueço de tudo. E de repente, estou em sua teia outra vez. A teia de mentiras mais bem construída que já observei. Nesses mergulhos eu vivi as histórias mais estranhas de que posso me lembrar.
Ópio, vinho, ódio, ilusão. Os piores medos, a maiores angústias, as grandes ilusões, as maiores dores. Meu reflexo nas águas, meu maior oponente. Tudo se afoga dentro de mim. Eu não quero mergulhar de novo, eu tenho medo. O canto da sereia me chama outra vez, mas eu sei de tudo o que acontece, também sou filha das águas. Minha essência é escorpiana, não se engane com a minha balança. Com tanto ódio por um signo, eu não posso acreditar no seu oposto. Eu só não sei por que o destino insiste em me fazer mergulhar de novo.  

domingo, 6 de março de 2016

Chuva para dois


Um casal desses que a gente vê pelas paradas de ônibus, numa moto, num passeio no shopping, andando pelas ruas do centro da cidade e até na sala de uma faculdade. Eles moram numa casa simples no Rangel. Foi a casa que puderam comprar.
A vida sempre difícil os levou para caminhos distintos daqueles que sonharam. Só o amor dos dois alivia as desilusões da vida. Sair da casa dos pais para morar juntos foi a coisa mais audaciosa que fizeram, e a melhor. A vida é difícil e o dinheiro só é suficiente para as contas primordiais. Querem ter profissões diferentes e morar em outro bairro. Comprar uma casa bem maior não seria mal. Enquanto isso não acontece eles sonham e lutam.
A volta do trabalho é uma das piores partes do dia: ônibus lotado, gente suada e um aperto infernal. De vez em quando Kayllany olha pela janela e sente inveja dos carros ao lado. Dane-se o trânsito, bom mesmo é estar sentada dentro de um automóvel e não nesse aperto. Enquanto isso, Denilson pilota a sua moto e cruza entre os carros querendo chegar na faculdade na hora.
Depois das aulas na faculdade, os dois chegam em casa. Cansados, só querem dormir, mas, o amor não dorme. Apesar das dificuldades, nada supera a felicidade de pôr os pés em casa depois de um dia exaustivo, mesmo quando o teto é de telha, as paredes são finas e os móveis são simples. O importante mesmo é ter um lar acolhedor.
Bonito é quando chove. É possível que as gotas da chuva sejam sentidas mesmo dentro de casa. São pingos finos e discretos.  Nas madrugadas chuvosas, o corpo de quem se ama parece adquirir novos contornos de desejo, principalmente debaixo de um lençol quente. O único lugar para se abrigar é no corpo um do outro. Para eles, não há nada melhor do que dormir aquecidos num abraço infinito, ainda que sintam os pingos da chuva.
Parece até que a casa simples deixa as coisas surpreendentemente mais bonitas. Não fossem as telhas, o abraço não teria tanta graça. Quando amanhece o quarto fica num tom de azul que não posso explicar. As cores e sensações que moram nessa simplicidade são únicas.
Já são cinco da manhã e lá fora está frio. O orvalho pode ser sentido mesmo com a janela fechada e aí eles precisam despertar. Os pássaros cantam lá fora, mas dentro do quarto os corpos ainda se procuram. Luz azul, frio, orvalho, amanhecer, pássaros cantando e o amor sonolento dos casais que se amam. O dia chama, eles precisam trabalhar. Janela aberta, clima da madrugada e café da manhã. A casa é simples, mas guarda em si uma magia que só o amor desvenda.