quinta-feira, 18 de abril de 2019

Reminiscência sonora do ego ferido




No labor das palavras,
Meus olhos perambulam
Em busca de sentidos.
Nada encontram,
A não ser a reminiscência
Sonora de algo que
Parece bonito.
Minha percepção cálida
De leitora insatisfeita
Alimenta o ego desta que escreve:
Isto não está bom,
Mas aquilo também
Não está
-
Um vocabulário bem ornamentado
Travestido de lirismo
E carente de significado


sábado, 23 de março de 2019

Como fosse um rio




Como se eu fosse um rio
Ele em mim nadava
Como se eu fosse um rio
Ele me bebia
Como se ele fosse um mar
Para onde as águas corriam
Como se fosse a distância
O fim de todo encontro rio-mar
Como fosse o querer do destino
Que seja o coração dele
O lugar do meu rio desaguar


domingo, 24 de fevereiro de 2019

Sessão da tarde



Havia oito pessoas na sala de cinema, fiz questão de contar no mínimo umas dez vezes para ser fiel a minha história. Eu, dois senhores, uma senhora, um funcionário do cinema e uma família: um idoso e dois jovens. Achei incrível uma sessão com poucas pessoas, senti-me alguém fora da curva, sem ter o que fazer, talvez até privilegiada em poder gastar duas horas da minha vida assistindo a um filme tão ruim quanto a minha existência nesse momento.
Mais uma vez observo um ser humano em crise, cansado, fugindo de suas atribuições e culpas. O dedo em riste de tanta gente faz questionar sobre a qualidade das sementes plantadas. Saber-se uma pessoa má é um choque para o ego. Confusa, não sei direito onde mora a intuição e onde se esconde a loucura.
Ao meu lado, uma velha companheira não contabilizada na sala de cinema repete os últimos acontecimentos da semana e as palavras violentas batem em mim como fortes pancadas. O trailer faz chorar, o filme não serve para rir. O filme, aliás, nunca caberia tão bem nessa semana. Fosse ele bom, não haveria sentido em mais nada. Tinha mesmo que ser fraco e incoerente para minha vida ganhar mais algum drama.
Encolho-me na poltrona e em vez de esquecer os problemas, passo a remoê-los delicadamente num ato masoquista e rebelde de quem não se ama e pretende continuar inflamando o próprio coração. Perguntava-me como pessoas, apenas pessoas, em sua maioria com dois braços, duas pernas, uma boca e estatura geralmente mediana, são capazes de destruir tantas coisas.
Eu, com um metro e sessenta, fui capaz de ser para outros muito daquilo que eu temia para mim. Se há alguma solução para os problemas que eu mesma arranjei, ela está perdida em algum lugar do meu próprio universo. Assim como a projeção do filme, meus atos passam por meus olhos: ontem desci do ônibus numa parada qualquer, sob o sol do meio dia, andei sem rumo, corri, atravessei avenidas e parei exausta com as pernas bambas, a pele ardendo e a cabeça latejando; revi a surpresa nos olhos dele e a lua nascendo vermelha; ouvi a voz de quem me teve ao lado por dezesseis ciclos solares e hoje me detesta. Tudo acaba.
É como se tivessem jogado fora um alimento mofado, mas que eu gostava de comer. É como se tivessem exposto minhas mazelas e agora elas tivessem sorrindo e acenando na enorme tela do cinema da minha cabeça esquisita. Acompanham essa sessão mental, um mal estar crônico e alguma leveza ao ver o lado mais escuro da minha lua.
Daqui a pouco, as projeções de hoje cessam, mas, já adianto que em algumas horas pretendo escrever outros roteiros. Dessa vez mais felizes, assim espero.




quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

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Aos filhos de libra




Era de libra como a lua vista assim é de cor de sal
era de libra como a luz das sete estrelas
forma algum sinal
era de libra quando dá um passo atrás
pra caminhar legal
era a balança universal
era harmonia como o ritmo da vida e o carnaval
era de libra como a brisa quando passa
e ondula o trigal
mas tinha medo de saber que o jogo da verdade
era fatal
era a balança universal
era de libra e amava a paz e a justiça natural
era de libra pra poder unir a ideia
ao seu material
o simbolismo da figura da mulher
paixão arterial
era a balança universal
era de libra como a valsa, o antigo Egito e afinal
era de libra e tem a crença da beleza
e do encanto geral
a natureza da firmeza e oscilação
a simpatia e tal
era a balança universal
-

Aos filhos de libra 
Oswaldo Montenegro

domingo, 10 de fevereiro de 2019

A utopia noturna dos dias



E se a humanidade resolvesse apagar todas as luzes para contemplar o céu? E se no fim acabasse tão encantada e iluminada com esse encontro divino que homem algum fosse capaz fazer qualquer maldade contra o próximo ou contra si mesmo sob a luz das estrelas? As pessoas ficariam tão encabuladas com a beleza do céu que não teriam coragem de desrespeitar algo tão nobre e tão sagrado. Há muita luz nessa escuridão.
Os verdadeiros amantes fariam amor debaixo desse véu estrelado e a lua choraria com tamanha ternura.  Não haveria mais novela. Vingança? Não mais. As guerras cessariam, pelo menos à noite. Só nos hospitais, presídios e manicômios as luzes continuariam acesas, mas... luzes azuis. A cidade viraria interior, com gente pondo cadeiras nas calçadas para conversar, contar histórias. Laços seriam reatados e sorrisos recuperados.
Mulheres não teriam medo de andar sozinhas, crianças não mais chorariam, ninguém mais teria medo de alma penada ou de bicho-papão. As estrelas cadentes teimariam em realizar mais desejos...
Dançaríamos com shows no meio da rua para saudar os astros. Para que shopping? Para que cinema? Se agora o melhor filme do mundo passa de graça na maior tela que se pode supor. Então amanheceria e as pessoas reconheceriam a luz do sol que viram refletida na lua. E mais uma vez ficariam encantadas...
-"Olhem essas nuvens!"
-"Vejam esse azul! Meus Deus! Quantos pássaros!"
E o senhor Sol?
-"Energia nuclear para quê? O sol já existe e já oferece energia demais" Diriam os senhores do petróleo, das usinas nucleares e do carvão.
-"Energia nuclear, só a do sol. Nada de bombas" Ditadores e líderes mundiais entrariam num consenso.
Agora que as pessoas enxergariam melhor, sairiam como formigas dos prédios cinzentos, dos carros, das casas, das cascas! Sentiriam a luz! Agradeceriam por ela!
Então eu acordo, consciente da enorme loucura do meu sonho. Num mundo de sistemas e insanidades, tudo pode ser construído ou destruído com palavras. Silenciosamente construo, sonhar ainda é de graça.


O segredo do meu violão


Meu violão é constantemente esquecido, fica encostado no canto com uma sombra de esperança, como se estivesse sempre pronto à vida. Ele é parte da minha essência adolescente, de quando eu acreditava que pudessem brotar de mim talentos musicais. Consumi meus dedos e alguns neurônios, de modo que me restaram a lembrança de alguns acordes e folhas com cifras de canções perdidas.
Quando em meio a diatribes do meu coração, produzo os sons mais simples que podem soar das cordas. Músicas decifradas por alguém acalmam o meu desejo por produzir alguma coisa que me transcenda. São apenas sons, acordes simples, alguma coisa com sétima, alguma coisa maior ou outra menor. O ritmo mal me pertence e não há ser vivente que queira ouvir a minha voz. Mesmo assim fluo transcordante, ciente do pouco saber musical que me basta. 
Do meu instrumento brotam mil possibilidades noutras mãos. Ele não se abre para mim, desconheço seus segredos. Harmonias, acordes, arpejos e escalas que se escondem por entre cordas e braço. Aos cuidados de quem conhece suas delicadezas, o meu violão se desfaz de tantos mistérios que é como se eu nunca o tivesse visto. Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião. As mesmas mãos que me afagam descortinam os segredos do meu violão, como se a melodia do mundo fosse uma eterna novidade.
Um rapaz de cabelo longo, muito mais longo que o meu, está sentado em minha cama, tocando o meu violão e a voz dele é tão bonita. Ele canta Caetano, Novos Baianos e Chico Buarque. Eu me lembro de outros tempos, quando eu descobria como fazer acordes e volto para o agora, para a tarde que existe somente no meu quarto. Continuo observando o rapaz sentado em minha cama e ouço os segredos que o meu violão cochicha.


A lua sob a minha janela




segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A casa do olfato




Um, dois, três, seis segundos, quem sabe, até as partículas chegarem ao cérebro e mandarem a mensagem. É a pessoa que está aqui. A pessoa inteira, de corpo, alma e cheiro. A presença completa que invade as cavidades entre os olhos e a boca para avisar da existência de outro indivíduo. Eu sei sobre as digitais, pesquiso sobre a íris, ouvi falar sobre a disposição das veias no braço, acredito na singularidade da palma da mão, mas, me encanta mesmo a coisa química e única do cheiro. Todo esse fascínio faz com que eu lembre que sou apenas um animal no mundo, cheio de instintos e necessidades primárias, assim como qualquer outro ser vivo. Não me vejo tão diferente das bactérias e nem dos macacos, quando somos todos partículas e profundezas.
Não me desapego da memória de perfumes, lembro de nomes e marcas, mas gosto mesmo dos bons cheiros esquecidos, como o cheiro do joelho, o cheiro do pé em dias suportáveis ou o cheiro do pescoço que vem de quem eu amo. Ao mesmo tempo, desconheço o meu cheiro, não sei como é a memória olfativa que se pode ter de mim. Desejo alguém que vicie caso cheire meu pescoço, porque esse vício eu conheço. Ouvia canções de saudade sobre o cheiro deixado dentro de um livro ou em um lençol, mas me contentava em não sentir, não viciar, não querer beijar toda a extensão da geografia alheia. Podia me imaginar em abstinência, estremecendo, caso sentisse, ao andar na rua, qualquer partícula de oxigênio adulterada que lembrasse a causa da minha embriaguez. 
O cheiro de alguém virou a minha casa, de modo que basta a presença a poucos metros de mim para que eu sinta: esta pessoa realmente está aqui.  Chego perto, e, ao sentir, penso: isso está dentro de mim. Imagino as partículas entrando, caminhando pela minha cabeça, dançando, carregando outro ser humano para meu corpo, alimentando o vício, preenchendo minha memória de sorrisos, detalhes, instinto e torpor. Bebo o suor, como se não tivesse juízo e horas depois ainda posso perceber o cheiro em meu lençol, no travesseiro e em meu próprio corpo.
Existem milhões de casas, mas nenhuma é a casa formada com partículas específicas que anseiam pelo mar, pelos sons e pelo silêncio. A alquimia do DNA alheio construiu pontes entre minhas narinas e meu coração. O que quer que aconteça com a minha morada do cheiro, ainda terei memórias etéreas e inacessíveis.  Assim, deixo as partículas fluírem calmamente por rotas e veias.