terça-feira, 16 de junho de 2020

Catarse clandestina





O veneno segue à frente da linha
E o mundo em decantação
Abraço o meu filho
Claustros e fugas, rumores de alquimias
Coletiva solidão
Há fome de tudo no oco de cada coisa
E eu reclusa atrás da porta
Cinzelando palavras brutas
Minha adormecida aflição
Findo o tempo de exílio
Vejo a catarse clandestina
Espalhada pelas ruas
Sonhados devires
Da humana condição

segunda-feira, 15 de junho de 2020

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Sal da madrugada




Sal da madrugada, degelo da minha água
Rumino constelações no colchão a planar
Suplico etérea
Nada que chegue aos ouvidos
Daquele que me espreita
O futuro que avilta
Não quer me esperar
Madrugar anoitecida
Faz de mim poeira
Um tesouro no travesseiro
Ao avesso de todas as horas
Vinte e seis em outubro
O devir virá

Poesia crua




De todo sol que caminha
Do amanhecer ao meio-dia
Acabou-se a poesia
No meu rouco ladrar
Cravei uma insígnia na válvula do peito
Para dizer ao mundo:
Sou mulher das letras
Quero a alegria de um poema
Coberto de lua
E, à meia noite,
Com os dedos em riste
Escrever sílabas de poesia crua
Envolta em palavras nuas
Uivar

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Memorial das sombras



Encostado em um dos pilares que sustentavam o alpendre da casa sertaneja, observava a árida paisagem e o arrebol que anunciava o fim do dia. Estava sozinho, à beira de si mesmo. Seus irmãos moravam em outras casas, espalhados seridó afora. Entre uma colheita e outra, o restante da família foi embora em velhice e mazelas.                                               
O homem dormia cedo e mais cedo ainda acordava. Gostava de abocanhar, numa só mordida, dia e noite. Sonhou com um campo florido, sentiu-se livre. Acordou nas primeiras horas da madrugada e deitou-se numa rede, envolto em azul-marinho, iluminado por um candeeiro, estrelas e metade da lua. Ao longe, o vulto do pai, sempre silencioso, em suas caminhadas noturnas. Adormeceu.                                                                  
Viver era aquilo e não viver também. O que seria depois da partida? Uma cópia de seus ancestrais, silenciosos e sem propósito, rondando cômodos? Teve medo de tornar-se uma assombração ancorada. Veria os seus descendentes e o passar de gerações, assistiria às mudanças na paisagem e ao findar de eras. Não existiria mais casa, e talvez os espíritos que lhe acompanham já não estivessem mais ali. Outros moradores amariam sob sua cama, ou, tudo o que lhe é importante desmancharia em poeira.                                                                      
Não sabia como acharia os campos com que sonhara, não tinha rotas. Acordou de repente, entendeu tudo o que precisava: tinha encontrado a sua botija. Pediu a bênção para a sombra da avó, que rezava. Fez o sinal da cruz observando a antiga imagem de Nossa Senhora na parede descascada. Apagou a vela do oratório e arrumou as mudas de roupa. O mundo estava lilás, à espera da hora de nascer. Justino chegou à porta e viu seu pai fumando num canto do alpendre. Depois de alguns passos, olhou para trás, despediu-se da casa e recebeu um aceno. Continuou caminhando para além do sonho, queria os campos. Precisava viver.   

Cinzel





A ideia é simples
Vou cinzelar o texto
Deixá-lo-ei chique
Entre uma linha e outra
Aplicarei a ideias
Que sem perceber
Roubarei de Clarice


Descobri que a amo



Clarice, descobri que a amo, do tanto que há nela e que há em mim. Não posso sê-la, nem em reencarnação. Comi-a e vomitei, comi outros pedaços até chorar. Há de ser a sua fôrma brilhante o caminho do meu nada. Há a sua narrativa em meus sonhos, como se fosse eu que estivesse falando, ou sua voz reverberando no meu oco.             
Por não sê-la revesti-me do seu riso. Compartilhamos o segredo de ter os olhos verdes e ninguém saber. Afora isso, não consigo capturar a sua narrativa e me despedaço inteira naquilo que não sei inventar ainda.                                                                                                                             
Fora ela a minha feliz desconhecida. De tudo o que imaginei nada soava como dentro dos livros. Esqueci-me da aflição analítica, estive entregue aos seus caprichos e vacilos. Estive com ela por uma semana inteira, todas as noites e madrugadas, até absorver o que tinha sido guardado para mim.                                                                                       
Tornei-me confusa com o tempo, com o reverso dos hábitos, quis roubar-lhe o que  não me cabe inteira. Apaixonei-me lentamente como quem percebe a queda e não consegue frear o impacto. Não posso trapacear com o destino.                                                                                            
Nunca menti tanto como agora, para onde estou indo além dos meus dedos? Que coisas mais me aborrecem, além do fato de que nunca mais serei a mesma? Ela foi a minha epifania, a minha hesitação e o meu dilúvio.                                                                                                           
Ela, que sempre esteve ali, a um passo da estante. Descobri que a amo.

Meu é segredo é ter os olhos verdes


Clarice Lispector - É pra lá que eu vou

O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.



sexta-feira, 5 de junho de 2020

O que dizem os vapores


Caminham os vapores dançantes em animadas correntes elétricas. Deixam o hipotálamo gritar de amores, atiçando o sistema límbico. Dizem para ela: é ele que está aqui, inteiro. Em instantes a mulher desmancha dentro do tórax e as suas pupilas saltam, como se quisessem o segundo fracionado e guardado pela eternidade.                                               
Facilmente se reconhecem, como bons primatas que são. Os dois, um feliz encaixe entre moléculas de odores e proteínas. Como diferenciá-los dos anuros ou das abelhas? Agarram-se, porque não precisam mais pensar, misturam-se porque a vida é encaixe e impermanência.
Vivem de apegos. Visitam os bons cheiros esquecidos: o cheiro do joelho, a roupa bem lavada, o cabelo depois do banho, a alegria que emana do pescoço. Ignoram os próprios vapores, mas vivem pelos rastros do parceiro.  Farejam os lençóis depois da despedida, ressoando saudade no travesseiro.                                                                                                  
Posso imaginá-los em abstinência, estremecendo, caso sintam, ao andar na rua, qualquer partícula de oxigênio adulterada que lembre a causa da embriaguez. Um ser humano que mora no outro e deixa profundas insígnias na memória alheia. Cheiro-casa, cheiro-presença, átomos repartidos, vida a plenos pulmões.                                                         
            Pequenas estrelas multicolores que andam por rotas e veias, alimentam o vício pela geografia do corpo, ditam paixões e reverberam em pacífico amor. Que histórias contariam os perfumes em suas etéreas aventuras? Enquanto isso, eles se amam.

Graus de erudição




Para onde fosse carregava uma lista de palavras. Catalogava as que considerava bonitas e sonoras, buscava brechas para colocá-las em algum texto, descortinava estruturas em busca de apocalipses literários. Queria arrebatar quem a lesse, mergulhava em dicionários, lia e relia autores consagrados. Precisava construir-se em alguma coisa.                   
Ficava à espera de outras até os quadris doerem.  Sentada, queria ser tocada por Hilda, Nélida, Clarice, Lygia ou Cora. Enquanto as buscava procurava por si mesma, miúda, desconhecida, desimportante, responsiva, volitiva e açulada. Catava os pedaços das outras para fazer uma caricatura leviana de si mesma.                                              
Submetia textos às custas de esperança. Faltava-lhe, segundo diziam, cinzelar ideias. Anotou a palavra cin-ze-lar. Taí, gostei. Havia em sua escrita uma linguagem literária mal trabalhada. Não tinha maturidade ainda para amarrar o nó da narrativa.           
Gostava dos poetas que sabiam trabalhar com a simplicidade. Não precisavam de malabarismos para dizer muito. Argutos, lindos. Invejava aqueles que brincavam com palavras sedutoras, jogavam tudo numa massa frasal e vomitavam genialidade. Andava pelos opostos, filtrava seus graus, queria mostrar erudição, mas soava brega.Tinha em mãos absinto, cosmos, flamejar, iconoclasta, réquiem. Réquiem é lindo! O que fazer com o réquiem? A minha própria missa? O funeral da minh’ alma desgastada? Rebordosas em seus imaginares. Deitada elaborava pepitas que não conseguia extrair dos dedos.                                                                       
Parecia uma musicista em busca de notas. Fazia trocas e lia em voz alta, precisava daquilo que soasse melhor. Das formas verbais fazia brinquedo, tinha sanha de ser emblemática. Não se sabia lacônica, amiúde partejava ideias translúcidas e talvez fizesse poemas dadaístas. A elaboração monolítica era armadilha para alguns. Basta erguer a voz e comprovar os movimentos da língua em um falso árabe.                           
Quantos aforismos eram necessários para conquistar o mundo? Não poderia esquecer-se que palavras bonitas não fazem literatura. Veria sóis furta-cores do alto de uma montanha, aprenderia matemática, faria o necessário para usar todas as palavras do seu catálogo. Ainda que nada fosse amarrado, ainda que permanecesse imatura, ainda que não soubesse manusear o cinzel.                            
 Faria com que os mais rigorosos apreciadores lessem em farsi, fingiria sentidos, como quem forja enigmas. Seria capaz de se esconder em labirintos para não mostrar a verdadeira face. Não queria mostrá-la. Debaixo das cortinas agudas havia uma criança capaz de escrever feliz sobre a aventura de andar de ônibus no centro da cidade.  Isso lhe bastava. Deixem-na.                      

Ana-flor



Em cima da mesa de cabeceira descansava deslumbrante uma flor psicodélica, do tamanho de um hibisco, mas não era um. Era um mágico existir, a confirmação de que nunca conheceremos os detalhes da vida. Há mistérios para toda espécie. A corola da flor parecia revestida de aquarela, tons de turquesa e fúcsia misturavam-se sem violência. Do receptáculo floriam carpelos e estames alaranjados, exatamente como a natureza estabelece.            
Não sem espanto Renata a percebeu. Caso mostrasse para outras pessoas a absurdeza com que a vida lhe presenteara, pensariam ser mais um de seus artesanatos. Era Ana Amélia materializada, linda como sempre. Ana-louca. Amélia-atriz, aquariana. Ana era espontânea, muito viva, provocativa, solar. Ana e Renata eram amigas de longa data, amavam-se no silêncio da distância. A lembrança dela não causava escoriações de saudade.                  
Uma memória chamava outras, como se saíssem dos túneis da mente para celebrar alguma festa. Lembrou-se também de Ana Rita, uma colega de trabalho, tão morna e silenciosa quanto a flor arroxeada e meio murcha que dormia no balcão da cozinha. Sentiu medo da festa de dentro, das flores não. Imaginou que se pensasse em Ana Carolina provavelmente veria uma raflésia, ou algo parecido no sofá. E de fato viu, mas dentro do banheiro.                                                                                                                                    
É como se células vegetais tivessem brotado dos ossos de todas as Anas do mundo e criado raízes pelos corpos até transbordar em coisa viva. Renata sentia como se as flores fossem a natureza sob seus calcanhares, desdenhando dos seus sentidos, em sagrada visita. Um elefante no meio da sala traria mais certezas.                                                                              
Na tentativa de decifrar enigmas, listou quantas Anas conhecia. Tentava lembrar-se das suas raízes escuras, dos seus maus afetos e de suas atitudes de amor e caridade. Percebeu que vivia de epifanias, cultivava certa arrogância, mas nada que minasse o seu caráter. Era contemplativa, sagaz, noturna e às vezes introvertida. De vez em quando rendia bons frutos.                                                                                                              
Ana Renata questionou-se: “Que flor eu seria?” Sentiu calor nas entranhas. Ela que também era Ana.


Maria Vitória



               
    Chico irrompe no quarto como se fosse o dono do mundo, queria marcar território e amedrontar Maria Vitória, que tinha o dobro do seu tamanho. Ela me olhava como quem pedia proteção, já ele me pedia carinho, porque comigo era outro, mas não me enganava.         
    O olhar de Maria traduzia o seu desespero, ela esperava de mim todo o cuidado do mundo, como se eu fosse a criatura que a defenderia dos murros felinos de Chico. Ela estava certa, porque o pequeno rapaz gostava de persegui-la. O siamês já se preparava para o ataque.
    Levantei, dei um grito e em poucos passos Chico entendeu meu recado.  Saiu correndo e voltou à porta. Ficou por ali alguns minutos, como se buscasse um jeito de contornar a situação, até outra gata chamar-lhe a atenção. Sumiu. Maria Vitória me olhava como quem ria, e tirou um cochilo pelo quarto. Acordou, ouviu alguns versos, e quando pedi a sua opinião, miou com delicadeza.

Lola



Lola, Chico Buarque, 1987
 
Sabia
Gosto de você chegar assim
Arrancando páginas dentro de mim
Desde o primeiro dia
Sabia
Me apagando filmes geniais
Rebobinando o século
Meus velhos carnavais
Minha melancolia
Sabia
Que você ia trazer seus instrumentos
E invadir minha cabeça
Onde um dia tocava uma orquestra
Pra companhia dançar
Sabia
Que ia acontecer você, um dia
E claro que já não me valeria nada
Tudo o que eu sabia
Um dia