sexta-feira, 5 de junho de 2020

Graus de erudição




Para onde fosse carregava uma lista de palavras. Catalogava as que considerava bonitas e sonoras, buscava brechas para colocá-las em algum texto, descortinava estruturas em busca de apocalipses literários. Queria arrebatar quem a lesse, mergulhava em dicionários, lia e relia autores consagrados. Precisava construir-se em alguma coisa.                   
Ficava à espera de outras até os quadris doerem.  Sentada, queria ser tocada por Hilda, Nélida, Clarice, Lygia ou Cora. Enquanto as buscava procurava por si mesma, miúda, desconhecida, desimportante, responsiva, volitiva e açulada. Catava os pedaços das outras para fazer uma caricatura leviana de si mesma.                                              
Submetia textos às custas de esperança. Faltava-lhe, segundo diziam, cinzelar ideias. Anotou a palavra cin-ze-lar. Taí, gostei. Havia em sua escrita uma linguagem literária mal trabalhada. Não tinha maturidade ainda para amarrar o nó da narrativa.           
Gostava dos poetas que sabiam trabalhar com a simplicidade. Não precisavam de malabarismos para dizer muito. Argutos, lindos. Invejava aqueles que brincavam com palavras sedutoras, jogavam tudo numa massa frasal e vomitavam genialidade. Andava pelos opostos, filtrava seus graus, queria mostrar erudição, mas soava brega.Tinha em mãos absinto, cosmos, flamejar, iconoclasta, réquiem. Réquiem é lindo! O que fazer com o réquiem? A minha própria missa? O funeral da minh’ alma desgastada? Rebordosas em seus imaginares. Deitada elaborava pepitas que não conseguia extrair dos dedos.                                                                       
Parecia uma musicista em busca de notas. Fazia trocas e lia em voz alta, precisava daquilo que soasse melhor. Das formas verbais fazia brinquedo, tinha sanha de ser emblemática. Não se sabia lacônica, amiúde partejava ideias translúcidas e talvez fizesse poemas dadaístas. A elaboração monolítica era armadilha para alguns. Basta erguer a voz e comprovar os movimentos da língua em um falso árabe.                           
Quantos aforismos eram necessários para conquistar o mundo? Não poderia esquecer-se que palavras bonitas não fazem literatura. Veria sóis furta-cores do alto de uma montanha, aprenderia matemática, faria o necessário para usar todas as palavras do seu catálogo. Ainda que nada fosse amarrado, ainda que permanecesse imatura, ainda que não soubesse manusear o cinzel.                            
 Faria com que os mais rigorosos apreciadores lessem em farsi, fingiria sentidos, como quem forja enigmas. Seria capaz de se esconder em labirintos para não mostrar a verdadeira face. Não queria mostrá-la. Debaixo das cortinas agudas havia uma criança capaz de escrever feliz sobre a aventura de andar de ônibus no centro da cidade.  Isso lhe bastava. Deixem-na.