sexta-feira, 5 de junho de 2020

Ana-flor



Em cima da mesa de cabeceira descansava deslumbrante uma flor psicodélica, do tamanho de um hibisco, mas não era um. Era um mágico existir, a confirmação de que nunca conheceremos os detalhes da vida. Há mistérios para toda espécie. A corola da flor parecia revestida de aquarela, tons de turquesa e fúcsia misturavam-se sem violência. Do receptáculo floriam carpelos e estames alaranjados, exatamente como a natureza estabelece.            
Não sem espanto Renata a percebeu. Caso mostrasse para outras pessoas a absurdeza com que a vida lhe presenteara, pensariam ser mais um de seus artesanatos. Era Ana Amélia materializada, linda como sempre. Ana-louca. Amélia-atriz, aquariana. Ana era espontânea, muito viva, provocativa, solar. Ana e Renata eram amigas de longa data, amavam-se no silêncio da distância. A lembrança dela não causava escoriações de saudade.                  
Uma memória chamava outras, como se saíssem dos túneis da mente para celebrar alguma festa. Lembrou-se também de Ana Rita, uma colega de trabalho, tão morna e silenciosa quanto a flor arroxeada e meio murcha que dormia no balcão da cozinha. Sentiu medo da festa de dentro, das flores não. Imaginou que se pensasse em Ana Carolina provavelmente veria uma raflésia, ou algo parecido no sofá. E de fato viu, mas dentro do banheiro.                                                                                                                                    
É como se células vegetais tivessem brotado dos ossos de todas as Anas do mundo e criado raízes pelos corpos até transbordar em coisa viva. Renata sentia como se as flores fossem a natureza sob seus calcanhares, desdenhando dos seus sentidos, em sagrada visita. Um elefante no meio da sala traria mais certezas.                                                                              
Na tentativa de decifrar enigmas, listou quantas Anas conhecia. Tentava lembrar-se das suas raízes escuras, dos seus maus afetos e de suas atitudes de amor e caridade. Percebeu que vivia de epifanias, cultivava certa arrogância, mas nada que minasse o seu caráter. Era contemplativa, sagaz, noturna e às vezes introvertida. De vez em quando rendia bons frutos.                                                                                                              
Ana Renata questionou-se: “Que flor eu seria?” Sentiu calor nas entranhas. Ela que também era Ana.