segunda-feira, 8 de junho de 2020

Memorial das sombras



Encostado em um dos pilares que sustentavam o alpendre da casa sertaneja, observava a árida paisagem e o arrebol que anunciava o fim do dia. Estava sozinho, à beira de si mesmo. Seus irmãos moravam em outras casas, espalhados seridó afora. Entre uma colheita e outra, o restante da família foi embora em velhice e mazelas.                                               
O homem dormia cedo e mais cedo ainda acordava. Gostava de abocanhar, numa só mordida, dia e noite. Sonhou com um campo florido, sentiu-se livre. Acordou nas primeiras horas da madrugada e deitou-se numa rede, envolto em azul-marinho, iluminado por um candeeiro, estrelas e metade da lua. Ao longe, o vulto do pai, sempre silencioso, em suas caminhadas noturnas. Adormeceu.                                                                  
Viver era aquilo e não viver também. O que seria depois da partida? Uma cópia de seus ancestrais, silenciosos e sem propósito, rondando cômodos? Teve medo de tornar-se uma assombração ancorada. Veria os seus descendentes e o passar de gerações, assistiria às mudanças na paisagem e ao findar de eras. Não existiria mais casa, e talvez os espíritos que lhe acompanham já não estivessem mais ali. Outros moradores amariam sob sua cama, ou, tudo o que lhe é importante desmancharia em poeira.                                                                      
Não sabia como acharia os campos com que sonhara, não tinha rotas. Acordou de repente, entendeu tudo o que precisava: tinha encontrado a sua botija. Pediu a bênção para a sombra da avó, que rezava. Fez o sinal da cruz observando a antiga imagem de Nossa Senhora na parede descascada. Apagou a vela do oratório e arrumou as mudas de roupa. O mundo estava lilás, à espera da hora de nascer. Justino chegou à porta e viu seu pai fumando num canto do alpendre. Depois de alguns passos, olhou para trás, despediu-se da casa e recebeu um aceno. Continuou caminhando para além do sonho, queria os campos. Precisava viver.