Toda noite ela sonhava que andava pela praia durante a
madrugada, subia nas dunas e encontrava um rapaz. Um mês de sonhos com a lua
cheia, um mês acordando às três da manhã. Andava, andava, andava e encontrava o
rapaz sem camisa, sentado nas dunas observando o mar, como se esperasse por
ela. Era o seu melhor sonho. Noutras noites sonhava que estava num pedaço de
terra em frente ao mar, rodeada de pedras, ela e o rapaz. Parecia real, era uma
coisa tão boa que não sabia nomear. Sempre ele.
Lia morava numa praia, uma vila de pescadores longe do
mundo, que se resumia a céu e mar. Tudo ali parecia filme, quem sabe uma obra
de Jorge Amado ou um romance único de José Lins do Rêgo. Todo mundo era quieto,
o lugar parecia não obedecer ao tempo. A vida tinha gosto de sal, sol,
imensidão e maresia. Seis da noite os olhos já batiam cansados e os ouvidos
sorriam diante das histórias inverossímeis do seu pai. Sua mãe replicava a
realidade das suas ancestrais. Mulheres fortes do mar, rendeiras, artesãs,
caçadores, domadoras da mata. Pouca gente morria, pouca gente adoecia: as
mulheres viviam bem do frescor aos cabelos brancos e os homens, da força à
despedida do vigor. Só morriam os
peixes, camarões, lagostas e caranguejos. Casas simples e distantes. De vez em
quando alguém precisava ir à cidade, mas a aldeia permanecia como um grande
segredo, longe das coisas, das pessoas, da filosofia, dos grandes complexos, da
guerra e da extrema maldade humana.
Sabia que ali era um lugar tranquilo, mas mantinha-se
alerta e essa era a sua única preocupação. Aprendeu a ler com sua mãe, mesmo
que seu pai lhe dissesse que não precisaria das letras morando num fim de mundo
junto ao mar. Passava a vida lendo, contando estrelas, olhando o por do sol,
andando pela praia e jogando o corpo no mar. Acostumou-se a lavar roupa num rio
que ficava perto, ouvir as histórias de pescadores, observar o farol acender de
vez em quando e andar pelo píer de pedra. A moça de vestido branco contemplava
a vida até a boca da noite e depois ia dormir. Sonhava com o farol, com peixes
de diversas cores, vários planetas surgindo no céu e a praia. A praia em seus
sonhos parecia ter várias dimensões, lugares desconhecidos, coisas bonitas,
flores que não conhecia. Tudo estava guardado em seu coração.
Com treze anos beijou um rapaz e achou que o amava,
até que ele foi morar na cidade e nunca mais voltou. Esperou a sua volta por
anos, ficava até às dez horas esperando alguma luz do farol, entrava no mar até
a água bater no pescoço, deixava-se engolir pelas ondas, chorava como cachoeira
e se misturava ao sal. Ia dormir exausta e assim desacreditou no amor. Sua mãe
costumava alertar-lhe sobre os homens e o perigo representado pelos estranhos, apesar
da extrema tranquilidade do lugar. Somente cochichos e rumores sempre antigos
alimentavam o receio feminino. O único medo de Lia era encontrar com um grupo
de pescadores ou com alguém que não era dali. Gostava de andar sozinha, mas se
esgueirava feito cobra para que os homens não a vissem sozinha. Mulher de
pescador precisava de coragem, cada vez que o homem que amava ia para o mar,
era como se fosse para a uma guerra e das ondas ninguém ganha. O amor crescia
na angústia. Amor e medo, os anseios mais primitivos das mulheres. Era assim na
cidade, era assim na aldeia.
Na calmaria da maré baixa começaram os sonhos de Lia.
O rapaz alto, as dunas, um pedaço de terra rodeado de pedras na beira do mar, o
céu lilás, o céu azul, a madrugada clara, a lua cheia, os dois no mar. Era um
rapaz que não pertencia à sua aldeia, um rapaz que não estava em seu caminho,
mas que começou a fazer parte da sua vida em sonhos. Lembrava que tinha o olhar
forte e nunca dizia nada, mas sempre lhe estendia a mão, lhe beijava com amor e
lhe abraçava com força. A flor dos dezessete, os desejos, as curiosidades e os
medos. Esse rapaz nem existia, mas era real.
Um dia, a vida que parecia calma mostrou que a cupidez
habita os esconderijos do silêncio. A irmã de Lia, Açucena, estava grávida e o
rapaz namorava outra moça. A casa que dormia cedo agora enlouquecia em rebuliço.
Pai, mãe, tios, rapaz, moça, todo mundo gritava. As luzes acesas anunciavam
grandes confusões.
-Aquela puta precisa comer muito arroz e feijão para
ser eu
-Cala a boca, Açucena!!!
-Você que foi uma puta. Grávida? Filha minha,
grávida??
-Calma Abelardo, temos que acolher nossa filha
-Desculpa seu Abelardo, desculpe dona Iraci...
-Você namora a Melissa, seu imbecil, agora se resolva
com ela e case com Açucena.
-O que você fez com minha sobrinha?
-Minha, neta, meu Deus!!! Minha neta...
-Aquela puta...
-Cala a boca!!!!
No meio da agonia Lia saiu meio desorientada
acompanhada por sua cadelinha Sereia. Era como uma criança, era como sua filha,
era parte da família, era a coisa mais linda do mundo. Sereia não passeava
muito, mas nessa noite quis fazer companhia a Lia. As duas começaram a andar
pelas dunas e Lia pensava na vida e no amor. Sua irmã devia estar muito
apaixonada, Zeca é bonito, mas namorava a Melissa, então não havia muito no que
pensar.
O amor é complicado mesmo, pelo menos vou ganhar um sobrinho,
ou sobrinha.
Andavam e conversavam, Lia e Sereia. Até que foram
subindo uma duna mais alta e cansando...
-Calma, espera, quietinha Sereia, vem cá. Lia disse
baixinho.
Agarra a cadelinha em seus braços, observa de longe,
treme. Não... não é possível, que merda é essa... não... quieta Sereinha da
mamãe, calma. E para, observa o rapaz contemplando o mar. O cabelo dele é
grande, como no sonho. É o rapaz do sonho e por um momento achou que estivesse
sonhando, mas a cachorrinha e a agonia de sua família eram a prova de que
aquilo era real. Afastou-se silenciosamente e saiu correndo pela praia, com a
cachorrinha em seus braços. O coração pulava com força, pensou que morreria de
medo.
Chegou em casa, parte da família já tinha ido embora e
seus pais dormiam, só Açucena e Zeca choravam abraçados na sala, muito
apaixonados e sem saber o que fazer com a situação. De repente pararam e
olharam para a expressão de Lia: boca branca, pálida, meio nervosa.
-Que foi Lia, a cachorra tá bem? Você tá bem!?
-Calma, é que tropecei numa duna, me assustei. Só
isso. Pensem em vocês, vou dormir. Boa noite.
Sereia balançava o rabinho, tranquila como sempre.
Talvez tenha sentido a aflição da dona, mas agora queria deitar na cama junto a
ela e sonhar que devorava peixes. Aliás, a cadelinha merecia, ficou quietinha
até chegar em casa. Recebeu um afago, deu um latido manso e dormiu. Somente Lia
não dormia. A essa altura a luz da sala estava apagada e todos tinham ido
deitar com seus problemas e soluções. Os olhos verdes da moça permaneciam
abertos, da cama podia ver o céu, a lua cheia e a madrugada que corria bonita e
mais clara que nos outros dias. Os pensamentos estavam envoltos no susto e no
encontro de antes. Não era possível que tivesse vivenciado uma cena de sonho.
No dia seguinte, viu o rapaz junto a outros
pescadores. Perguntou a sua irmã quem era e ela não sabia. Caminhou por perto,
olhou discretamente e viu que olhava para ela também, mas guardou a curiosidade
para si, não queria chamar atenção. À noite, quando a família jantava seu
Abelardo fez o favor de acabar com a dúvida:
-Olha Iraci, ontem chegou um rapaz aqui na aldeia,
Davi o nome dele. É um menino bom, sabe pescar também.
-Eu vi ele por ai mais cedo, porque veio pra cá?
-Parece que o pai morreu, a mãe foi para a cidade e
ele quis vir morar com o Cláudio, que é tio dele. Disse que é para não ficar
longe do mar. Conversei rápido com ele, sei também que morava naquela aldeia
vizinha, aquela que a sua irmã mora.
-Sei, sei. Tá certo deixa o rapaz sossegado. Vamos
jantar que a família tem outros assuntos importantes para resolver. Inclusive
conte as novidades, dona Açucena.
Já depois das discussões da família Lia deitou-se na
cama e ficou pensando nos sonhos, no rapaz (que agora tem nome), na vida, no
mar, nas estrelas. Nada faria com que dormisse. Ao seu lado Sereia olhava o
mundo sossegada e fora dali a terra fazia algum movimento ao redor do sol.
Virava e revirava na cama e o sono não vinha, então decidiu andar até as dunas,
encontrar a vida.
O rapaz outra vez estava lá. Olharam-se e sorriram
como velhos conhecidos. Apesar disso a moça ainda tinha receio, imagine, o
rapaz simpático do dia podia ser fera à noite e ali ninguém ouviria um pedido
de socorro. Por isso Lia ficou um pouco afastada, com o coração
acelerado, sem saber como agir. Ele permanecia quieto e não queria assustar a
moça, porque ele também tremia.
Davi costumava visitar as dunas já há alguns meses.
Depois que o pai ficou doente, começou a entrar na jangada e ir até a aldeia
vizinha pensar na vida. Quando o dia estava perto de amanhecer e a maré
baixava, entrava outra vez no barquinho e seguia para mais um dia de pescaria.
Era um jeito de fugir do mundo e numa dessas fugas, quando andava pela praia,
viu uma moça branca, de cabelos pretos, com um vestido branco rendado. Parecia
um reflexo da lua pela praia. Não sabia, mas era Lia.
No meio do encontro, os dois assustados, Davi estendeu
a mão.
-Gosto de ver o mar, sentar nas dunas. Nunca vi outras
pessoas aqui, essa hora, mas não se assuste não. É problema para dormir? Ver o
mar vai te fazer bem, se bem que... a gente vê o mar o tempo todo.
E sorriram.
-Dê licença, não quero atrapalhar a sua contemplação.
É problema para dormir sim, problema na família, problema no coração. Aliás,
meu nome é Lia. Você é Davi que eu sei e sei também que chegou esses dias por
aqui.
-As pessoas sempre comentam quando chega gente nova,
se você sabe meu nome, acho que deve saber que Cláudio da quitanda é o meu
tio. Você deve conhecê-lo, todo mundo aqui se conhece. Como é que uma
moça tão nova já tem tanto problema na vida?
Conversaram até passar o medo, compartilhando
angústias, fragmentos da vida, coisas pequenas que se compartilha com o cuidado
de quem se conhece a pouco tempo. A conversa se estendia até o sol iluminar a
praia com os primeiros raios e lua levar as estrelas para deitar. Davi
acompanhava Lia até em casa e seguiram se encontrando nas dunas por meses.
-Qual o sentido da vida? Lia perguntava.
-A terra gira ao redor do sol, que é uma estrela
enorrrrme. A gente vive ao redor dele, se alimentando dessa luz, do mundo e das
coisas. Acho que o sentido da vida é viver, além do existir. Entende? Eu quero
viver, quero construir um barco, me jogar pelo mundo.
-Eu já vivo aqui, vivo em paz. Sinto que consigo
conhecer o mundo daqui, quieta, só olhando. Lá na frente tem o farol e depois
tem mais mar e mais gente e nenhuma novidade. Todo mundo é igual. Aqui na vila
as pessoas não conversam muito, mas têm as suas questões. Todo mundo quer
encontrar um sentido nessa vida, seja pescando ou cuidando de uma quitanda,
como seu tio. Eu quero ser mãe, cuidar de bichos, ter uma casinha de madeira,
amar e continuar olhando o mundo, assim, como agora.
- Obrigado por existir Lia, de verdade. Você é linda e
eu não falo só da aparência, é linda no jeito de existir mesmo. Eu já te vi com
esse vestido branco andando pela praia e eu me senti tão bem. Você me lembra a
lua sabe? Até seu nome faz lembrar a lua! Posso te abraçar?
-Pode.
Era amor, tinha gosto de amor e foi anunciado antes de
ser. O caminho de Davi tinha cruzado o de Lia e o nó do amor só seria desfeito
se assim um dos dois escolhesse. Beijavam-se através das distâncias dos
minutos, percorriam horas de afeto deitados sob uma colcha de crochê que ela
trazia de casa todas as noites. Envolvidos os corpos, nada era pecado.
Quem dera ser um peixe... os dois mergulhavam um no outro, entrelaçavam as
pernas e tudo desaguava no mar, fosse o mar dos sonhos ou o mar cristalino
banhado pela lua. Nadavam nus, libertos do mundo, naufragados de amor e
felicidade. O amor também tem gosto de sal.
-Você tem o coração lunar, eu te amo. Eu sei, eu sei
Lia, que você é meio misteriosa, meio calada, mas esses mistérios não importam
tanto, sabe? Eu gosto mesmo é da sua verdade, de te olhar bem no fundo dos
olhos e ouvir os teus segredos. Viu?
-Viu. Você tem os olhos de sol, Davi, sabia? O
problema é que a gente se encontra essa hora, mas naquele dia em conversamos de
manhã eu vi a cor dos seus olhos. São tão bonitos, parecem fragmentos de sol,
te amo. Se tivermos um filho ele vai ser uma mistura de sol e lua. Que bonito,
te amo, te amo muito.
Assumiram um namoro discreto, com a bênção dos pais de
Lia e de seu Cláudio. Namoravam na sala, como se ainda não conhecessem certos
prazeres. Andavam de mãos de dadas na frente dos outros, mas o mundo
desconhecia os encontros noturnos e as alegrias que só as dunas presenciavam.
Numa noite, se amaram como de costume. Ele dentro dela e o mundo esmaecendo,
cada vez mais forte, a aurora rompendo a noite e o corpo dele indo mais e mais
forte. Olhavam-se nos olhos enquanto o dia ficava azul, nunca estiveram tão
bonitos.
-Eu te amo, Lia.
-Eu te amo, Davi.
Nesse tempo, o mundo fechou-se só para os dois, mas as
coisas ainda aconteciam. Zeca finalmente casou-se com Açucena, fazendo cessar a
agonia da família dela e causando um enorme estrago no coração de Melissa. Não
se pode construir um amor destruindo outros, a paixão cega. Talvez os tempos de
amor tenham acabado, ninguém é feliz para sempre.
O coração de Lia parecia pesar. Davi disse que estava
cansando de ir para as dunas, as madrugadas insones não lhe rendiam mais uma
boa pescaria. Encontraria Lia de durante o dia, a beijaria à noite e quem sabe
compartilhariam os corpos em lugar escondido na praia, sempre de dia. Foi então
que ela começou a sonhar com uma moça morena de cabelos cacheados. Toda noite
essa moça, que vestia uma saia laranja e uma blusa marrom, subia as dunas e
abraçava o seu amor. Lia chorava, gritava, não conseguia se mexer, enquanto os
dois sorriam, leves de amor.
O pesadelo não tardou a ser real. Maia apareceu na
vila junto com a uma criança e procurava por Davi. Só não usava a mesma blusa
marrom do sonho, mas os cachos, a pele morena e o sorriso já não eram novidade.
Ela tinha gerado um filho dos dois, foi o primeiro amor dele, que findou sem
razão aparente. Findou mas deixou um fruto, uma vida que precisava de um pai.
Davi andava insosso, sem sentir o gosto da vida, sem
conseguir olhar nos olhos de Lia. Tinha recebido uma carta de Maia e perdia o
sono sem saber o que fazer: amava Lia profundamente, mas o amor antigo ainda
cutucava o seu coração. Dois amores tão diferentes não podiam caber num peito
só. Uma era mulher do dia, morena, sorridente, expansiva, tinha o dom da
conversa, intrigava querendo, não pensava tanto: fazia. A outra era mulher da
noite, calada, tinha mais o dom da palavra que o da conversa, dizia coisas
fortes e certeiras depois de muito refletir, era misteriosa sem querer, pensava
muito: não fazia. De que interessa comparar dois seres humanos? O
primeiro amor tinha força somente porque tinha vindo antes, mas acabou
naturalmente porque faltava certa magia. O segundo era intenso, forte, leve,
mágico, parecia sonho, era lindo, mas não tinha gerado uma vida.
Davi levou Lia para um canto recôndito da praia, um
pedaço de terra rodeado de pedras. Queria dizer tudo para a mulher que ainda
amava, queria chorar e desabar em sinceridade. O tormento precisava ter fim.
Abraçou-a com força, beijou-a com amor, acariciou seus cabelos e olhou-a
fixamente nos olhos. Disse o que lhe tirava a força. Não sabia que teria um
filho, não sabia que Maia voltaria, não sabia como seguir e levou um tapa na
cara. Lia chorava, soluçava, não queria que ele chegasse perto. Desesperou-se,
gritou, xingou. O mundo desabou. Se aquilo não era a sensação de morte, chegava
perto.
O céu lilás perdeu o sentido, não havia amor que
florescesse na dúvida ou na presença de outra pessoa. Onde se esconderam as estrelas?
Cadê a imensidão do mar? Que pecado cometeu para que seus sonhos fossem
convertidos em pesadelos? Como era estranha a vida. Se encontrasse com Maia por
aí, talvez fosse amiga dela, talvez a cumprimentasse e até elogiasse a sua
beleza. Celebraria a vinda de uma criança ao mundo assim como celebrou o
nascimento do seu sobrinho. Mas não, sentia ódio, jamais por um bebê, mas pela
vida que a colocou dentro de um amor que nunca a pertenceu. Que fazia ali,
entre duas pessoas que se amaram no passado? Queria apenas o seu amor, o seu
agora, as suas madrugadas nas dunas.
Quão frágil é o amor? Numa noite se amavam com intensidade
até o amanhecer, noutra noite era ela que chorava sozinha na mesma praia,
diante da mesma paisagem. As palavras de amor dissolveram-se, talvez nunca
tenham existido.
Eu, que fiquei contente porque ele existia, agora
queria nunca tê-lo conhecido. O que é que faço se não consigo dormir? O que eu
faço se me derramo no mar, nado até sentir cãibra e depois saio exausta? Sou
covarde se não tenho coragem de me afogar? Sou forte porque encaro a vida?
Sereia quer brincar comigo e não tenho mais ânimo, o povo lá de casa me
pergunta sobre Davi, mas eu nem quero saber. Ontem ele mandou uma carta, pediu
para Zeca me entregar... se desculpava, aquele ingrato. Disse que queria me encontrar
nas dunas, de madrugada.
-Oi, Davi
-Perdoa, Lia. Não fiz por mal, pensei que minha
relação com Maia já tivesse um ponto final. Você foi a novidade mais linda que
me aconteceu, não me sentia assim há tempos, se é que já senti isso por alguém.
Só que eu decidi ir embora, ver o mar do mundo.
-Ir embora? Com ela?
-Não, vou mandar dinheiro para meu filho, vou dar um
jeito de cuidar dele. Eu magoei você agora, Maia no passado e fiz um
filho. Meu coração está perdido, louco, quer ir para o mar.
- E o meu amor não basta para você ficar? O meu amor
não é nada? Você indo embora essas dunas perdem a razão de ser, meus sonhos...
meus sonhos. Eu te falei que sonhei contigo, isso não pode ter sido em vão. Eu
já te amava tanto antes de te ver aqui... Davi, eu sonhei com nosso filho
correndo por essa praia, eu imaginei nós dois cantando aquelas canções
praieiras que você gosta, eu pensei em cada detalhe da nossa casa, com os meus
desenhos pendurados, as coisas cheias de conchas, os filtros dos sonhos
balançando com a brisa do mar e nós dois deitados na rede. Eu amei sozinha
então? Eu estava louca quando a gente se olhava nos olhos? De que serve meu
amor se não faz de mim nem uma desilusão amorosa para você?
-O seu amor foi tudo para mim. Tudo. Meu coração
enlouqueceu quando descobriu que tem um ser humano que veio de mim no mundo.
Você ainda é tudo, eu ainda te amo, mas preciso ir para o mar, não posso estar
contigo agora. Você, Lia, merece um homem inteiro e agora eu não sou nem
metade.
-Sim, você é um nada. Vai embora mesmo, covarde. Eu te
amava, seu desgraçado, eu me entreguei a você. E te dei o meu coração e você
vai embora. Vai junto com o mar. Desgraçado.
Nessa noite Lia saiu das dunas e foi até a ponta de
areia, dormiu escondida pelas pedras, fez da areia travesseiro e cobriu-se com
a manta que antes era sua cama. O dia amanhecia bonito, o canto das gaivotas
parecia ter sentido e dentro de si o resto era vazio. Observava tudo. A verdade
é que estava sempre sozinha, o amor era um pedaço de doce que acabava sem que se
percebesse, era um infinito com ponto final, um sonho bom que acabava quando
alguém de casa gritava na melhor parte e o sono acabava repentinamente. O
coração doía tanto que a preocupação de seus pais já não lhe era motivo de
angústia. O mundo que explodisse afinal. Para que paixão, para que sexo, para
que prazer, areia, sal e mar? Ficou horas sentada sem saber do tempo. Ao longe
Davi ia embora num barco...
A dor que ficou é uma velha conhecida e os sonhos
perderam a graça. Voltar no tempo era inútil, chorar também. Não sabia se
esperava a volta dele, que talvez amasse outra mulher pelo mundo. Qual o seu
destino senão casar com algum rapaz da aldeia, quem sabe aprendesse a amá-lo
com o tempo. Sabia que amaria os filhos que tivesse e iria adiante com a ideia
da casa enfeitada de desenhos, conchas e filtros dos sonhos. Não sabia quem
seria seu companheiro ou se teria um.
Por que a vida não lhe permitia prosseguir com o
homem por quem era apaixonada? Por que não tinha a chance de amar e ser amada?
Por que o amor precisava ir embora? Sentia que poderia dar amor a qualquer um,
mas a magia não era de sua escolha. Ninguém mais preencheria as suas madrugadas
da mesma forma, ninguém mais invadiria seus sonhos, ninguém. Nenhuma presença
representaria o amor de antes, nada. Aquilo só pertencia aos dois, as suas
memórias e aos seus sonhos. O sonho foi um espanto bom, é assim que as coisas
mais lindas acontecem: do nada.
Então é fato que amei sozinha. Melhor estar sozinha
do que amar sozinha.
As lembranças lhe inflamavam o peito e as lágrimas
a faziam lembrar o gosto do sal. Do sal. Os espaços antes preenchidos por
ele agora eram apenas registros do universo. Estava mais uma vez só, resignada
ao compasso de antes, assim era a vida.
Mais tranquila, passava as madrugadas nas dunas,
com o coração lunar a contemplar a praia. A noite azul e a lua bonita eram
seu amparo e sossego. De vez em quando cochilava perto das pedras e nadava
sozinha, seguindo a luz da lua. No entanto, ainda sonharia com os outros
lugares escondidos da aldeia e com o novo amor que mar lhe traria.