sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Jardim da fantasia



Bem te vi, bem te vi
Andar por um jardim em flor
Chamando os bichos de amor
Tua boca pingava mel
Bem te quis, bem te quis
E ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
E bem maior que o sol
Onde estás?
Voei por este céu azul
Andei estradas do além
Onde estará meu bem?
Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez
Me beije só mais uma vez
Depois volte pra lá

-Paulinho Pedra Azul


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Vai acontecer





Vai acontecer
Tantos ciclos, tantas vidas, tantas circunstâncias
De chorar, de sorrir, de gozar, de morrer e de existir
De mudar o cabelo, a casa, a roupa
Vai acontecer
De se isolar, de amadurecer, de errar e de partir
Vai acontecer tudo o que já aconteceu
De dizer mil vezes
Que depois de tudo isso, se pariu um novo eu

sábado, 8 de dezembro de 2018

Abraços de sereia




Catei flores brancas na esquina, vesti uma camisa verde-água e uma calça bem folgada. Sei que andei por aí meio esquisita, mas assim que é bom: esquisita e descabelada. Fui para onde a minha alma pode ser acolhida e esperei. As flores murcharam com a alfazema, mas não tem problema, Iemanjá entende meu coração e eu ganhei outras flores. As pessoas cantavam e soltavam fogos. Anoiteceu e eu ali, rezando para o mar me ouvir e minhas flores não agredirem a natureza.
Andei pela beira do mar bem devagar enquanto me perguntava quem habitava a escuridão que se via adiante. A noite me preenche. Vejo gente sozinha, casais, famílias, frascos de perfume, restos de isopor e flores brancas murchas pelo caminho. Joguei o isopor no lixo. Iemanjá vai ter muita gente para ouvir, será que meu coração-água irá dissolver-se até chegar a algum lugar místico?
Sento na areia e ninguém no mundo sabe do meu paradeiro. É um quase sumir, é saber-se desimportante para a humanidade, é entregar-se à realidade. Sou só uma pessoa desengonçada nessa praia pensando sobre a existência, carregando algumas coisas na bolsa, que se fosse levada, me tiraria do eixo, porque não lembro de nenhum telefone importante e eu seria quase como uma criança perdida sem ter como voltar para casa.
Abraços de sereia e eu quietinha na praia. A multidão celebra e eu passo por ela transparente enquanto carrego meus passos de liberdade e agradeço pelo dia oito de dezembro e pela força que mora no meu corpo ausente.





domingo, 2 de dezembro de 2018

Feitiço



A ilusão do artificial foi embora junto com lágrimas, canções, alianças e sonhos. Não mais me exaspera o futuro com suas insanas surpresas e alegorias. Os anéis atirados pela janela ou ao mar agradecem a liberdade e a banalização do que um dia já foi sagrado. A existência de imagens já não interfere na minha memória do mesmo modo que as lembranças em meu quarto tornaram-se bonitos enfeites. Uma leveza memorável pesa sobre tudo o que foi guardado ou não.
Ao lado de outro ser humano nenhuma declaração de amor permanece, porque a minha calma ainda não aprendeu a lidar com a areia movediça dos terrenos alheios. Acordei de um longo feitiço, troquei as lentes da vida e planejo mudar a cor dos cabelos.
Dia desses, num almoço solitário, eu engolia minhas quase-lágrimas com purê enquanto tocava uma música brega no telão da praça de alimentação. As lembranças me corroíam sem nenhum pudor, mas foi bom. Foi eficiente para que minhas pálpebras parassem de remoer o sal.
É pretensioso dizer que daqui nasceu um novo projeto de mim, mas é honesto mudar radicalmente as páginas do diário e escrever poemas de amor para uma moça parecida comigo. As madrugadas insones agora dormem cedo e qualquer sentimento que exista aqui dentro já não tem o mesmo nome.




quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Oração à sabedoria



Peço serenidade para o meu coração e sabedoria para os dias difíceis
Pisar firme nas linhas da vida, chorar quando preciso for e ter forças para a despedida
Enxergar o espelho da alma e a dúvida que tira a calma
Aprender a silenciar, compreender o que me pesa
Flores brancas ao mar, cheiro de alfazema
As águas hão de acalmar
Terço na mão e uma vela acesa
Mais que isso, agir com inteligência
Respeitar o tempo que não tenho
Para tudo, peço:
Sabedoria, serenidade, resiliência

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Antítese



Quanto mais gritam sobre o ódio, mais entendemos sobre o amor


Quando caminhei pelo sertão até encontrar um campo florido



Quando criança eu sonhava que saía da minha casa e caminhava até parar num campo florido. É como se o mundo não tivesse fim, nem eira e nem beira. Eu sabia criar e, na qualidade de filha única, brincava sozinha. Gostava de inventar personagens e existem fotos pela casa para comprovar isso. Fui uma cigana chamada La violetera, inspirada pelo nome do pote de azeitonas; com um tecido azul fui uma deusa grega e uma atriz ganhadora do Oscar; já fui senhora idosa e agente secreta. Nesses tempos eu não conhecia o mundo, e como não podia sair de casa, deixava-me transportar pelos sonhos, livros e fantasias.
Cresci, esqueci as personagens, encantei-me por sonhos diferentes e em lugar dos campos floridos, passei a sonhar com praias noturnas e a enveredar pelos sertões de mim e do mundo. Enxergo o grito dos animais, as dores dos continentes, as alegorias das estrelas e busco entender o caráter dos corações. Viver sem máscaras dá trabalho e eu só invento para sonhar.
Até que conheci Celly, sei lá. Ela me disse para imaginar e não ter medo. Estão aqui os sertões de mim e os campos floridos da infância. No paralelo do mundo, no que ronda por aí, eu me calo por aqui... Só que na criação não tenho como me calar, a voz de mulher ecoa na aridez do mundo, porque todo ser humano precisa gritar. Quatro palavras anunciam o deserto que por aí vem. Agora o saco cheio de ar pesa sobre as minhas costas e ando com dificuldade, a insustentável leveza do ar. Há tanto que pensar, porém, estou de saco cheio.
Trocada a canção, vejo o caminho diferente. É que depois do deserto algo há de florir. O objeto agora guardado em minha blusa simboliza a gravidez de uma coisa boa, nasce pela gola, como se viesse do coração e repousa em meus braços. Sou mãe. Caminho, brinco de ciranda e ao final encontro um campo florido, onde posso sentar ao lado do meu filho imaginado e apontar para um lugar feliz.
Ao imaginar uma personagem silenciada, é preciso fazer uma força descomunal para o grito. Não há como não pensar no silêncio e eu entendo o mal estar de quem me assiste. É com essa paisagem mental que transformo energias e todos os dias o coração cria coisas diferentes. Mesmo caminhando por sertões, eu ainda sonho com campos floridos.

sábado, 13 de outubro de 2018

A cor do caráter




Revelou-se no coração
A cor do sangue, do caráter
E da palpitação
Lágrimas apagarão o incêndio
O eco da vida nasce no silêncio
Mar revolto
Ensina sobre calmaria
É preciso abraçar o amor
Para ver nascer
Mais uma vez, a luz do dia

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Da noite e do brilho



Sexta-feira à noite,
Paro para assistir ao céu
Penso estar vendo um disco voador
Observo o brilho por seguidos minutos
De repente todas as estrelas
Parecem discos voadores também

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Coração lunar



Toda noite ela sonhava que andava pela praia durante a madrugada, subia nas dunas e encontrava um rapaz. Um mês de sonhos com a lua cheia, um mês acordando às três da manhã. Andava, andava, andava e encontrava o rapaz sem camisa, sentado nas dunas observando o mar, como se esperasse por ela. Era o seu melhor sonho. Noutras noites sonhava que estava num pedaço de terra em frente ao mar, rodeada de pedras, ela e o rapaz. Parecia real, era uma coisa tão boa que não sabia nomear. Sempre ele.
Lia morava numa praia, uma vila de pescadores longe do mundo, que se resumia a céu e mar. Tudo ali parecia filme, quem sabe uma obra de Jorge Amado ou um romance único de José Lins do Rêgo. Todo mundo era quieto, o lugar parecia não obedecer ao tempo. A vida tinha gosto de sal, sol, imensidão e maresia. Seis da noite os olhos já batiam cansados e os ouvidos sorriam diante das histórias inverossímeis do seu pai. Sua mãe replicava a realidade das suas ancestrais. Mulheres fortes do mar, rendeiras, artesãs, caçadores, domadoras da mata. Pouca gente morria, pouca gente adoecia: as mulheres viviam bem do frescor aos cabelos brancos e os homens, da força à despedida do vigor.  Só morriam os peixes, camarões, lagostas e caranguejos. Casas simples e distantes. De vez em quando alguém precisava ir à cidade, mas a aldeia permanecia como um grande segredo, longe das coisas, das pessoas, da filosofia, dos grandes complexos, da guerra e da extrema maldade humana.
Sabia que ali era um lugar tranquilo, mas mantinha-se alerta e essa era a sua única preocupação. Aprendeu a ler com sua mãe, mesmo que seu pai lhe dissesse que não precisaria das letras morando num fim de mundo junto ao mar. Passava a vida lendo, contando estrelas, olhando o por do sol, andando pela praia e jogando o corpo no mar. Acostumou-se a lavar roupa num rio que ficava perto, ouvir as histórias de pescadores, observar o farol acender de vez em quando e andar pelo píer de pedra. A moça de vestido branco contemplava a vida até a boca da noite e depois ia dormir. Sonhava com o farol, com peixes de diversas cores, vários planetas surgindo no céu e a praia. A praia em seus sonhos parecia ter várias dimensões, lugares desconhecidos, coisas bonitas, flores que não conhecia. Tudo estava guardado em seu coração.  
Com treze anos beijou um rapaz e achou que o amava, até que ele foi morar na cidade e nunca mais voltou. Esperou a sua volta por anos, ficava até às dez horas esperando alguma luz do farol, entrava no mar até a água bater no pescoço, deixava-se engolir pelas ondas, chorava como cachoeira e se misturava ao sal. Ia dormir exausta e assim desacreditou no amor. Sua mãe costumava alertar-lhe sobre os homens e o perigo representado pelos estranhos, apesar da extrema tranquilidade do lugar. Somente cochichos e rumores sempre antigos alimentavam o receio feminino. O único medo de Lia era encontrar com um grupo de pescadores ou com alguém que não era dali. Gostava de andar sozinha, mas se esgueirava feito cobra para que os homens não a vissem sozinha. Mulher de pescador precisava de coragem, cada vez que o homem que amava ia para o mar, era como se fosse para a uma guerra e das ondas ninguém ganha. O amor crescia na angústia. Amor e medo, os anseios mais primitivos das mulheres. Era assim na cidade, era assim na aldeia.
Na calmaria da maré baixa começaram os sonhos de Lia. O rapaz alto, as dunas, um pedaço de terra rodeado de pedras na beira do mar, o céu lilás, o céu azul, a madrugada clara, a lua cheia, os dois no mar. Era um rapaz que não pertencia à sua aldeia, um rapaz que não estava em seu caminho, mas que começou a fazer parte da sua vida em sonhos. Lembrava que tinha o olhar forte e nunca dizia nada, mas sempre lhe estendia a mão, lhe beijava com amor e lhe abraçava com força. A flor dos dezessete, os desejos, as curiosidades e os medos. Esse rapaz nem existia, mas era real.
Um dia, a vida que parecia calma mostrou que a cupidez habita os esconderijos do silêncio. A irmã de Lia, Açucena, estava grávida e o rapaz namorava outra moça. A casa que dormia cedo agora enlouquecia em rebuliço. Pai, mãe, tios, rapaz, moça, todo mundo gritava. As luzes acesas anunciavam grandes confusões.
-Aquela puta precisa comer muito arroz e feijão para ser eu
-Cala a boca, Açucena!!!
-Você que foi uma puta. Grávida? Filha minha, grávida??
-Calma Abelardo, temos que acolher nossa filha
-Desculpa seu Abelardo, desculpe dona Iraci...
-Você namora a Melissa, seu imbecil, agora se resolva com ela e case com Açucena.
-O que você fez com minha sobrinha?
-Minha, neta, meu Deus!!! Minha neta...
-Aquela puta...
-Cala a boca!!!!
No meio da agonia Lia saiu meio desorientada acompanhada por sua cadelinha Sereia. Era como uma criança, era como sua filha, era parte da família, era a coisa mais linda do mundo. Sereia não passeava muito, mas nessa noite quis fazer companhia a Lia. As duas começaram a andar pelas dunas e Lia pensava na vida e no amor. Sua irmã devia estar muito apaixonada, Zeca é bonito, mas namorava a Melissa, então não havia muito no que pensar.
O amor é complicado mesmo, pelo menos vou ganhar um sobrinho, ou sobrinha.
Andavam e conversavam, Lia e Sereia. Até que foram subindo uma duna mais alta e cansando...
-Calma, espera, quietinha Sereia, vem cá. Lia disse baixinho.
Agarra a cadelinha em seus braços, observa de longe, treme. Não... não é possível, que merda é essa... não... quieta Sereinha da mamãe, calma. E para, observa o rapaz contemplando o mar. O cabelo dele é grande, como no sonho. É o rapaz do sonho e por um momento achou que estivesse sonhando, mas a cachorrinha e a agonia de sua família eram a prova de que aquilo era real. Afastou-se silenciosamente e saiu correndo pela praia, com a cachorrinha em seus braços. O coração pulava com força, pensou que morreria de medo.
Chegou em casa, parte da família já tinha ido embora e seus pais dormiam, só Açucena e Zeca choravam abraçados na sala, muito apaixonados e sem saber o que fazer com a situação. De repente pararam e olharam para a expressão de Lia: boca branca, pálida, meio nervosa.
-Que foi Lia, a cachorra tá bem? Você tá bem!?
-Calma, é que tropecei numa duna, me assustei. Só isso. Pensem em vocês, vou dormir. Boa noite.
Sereia balançava o rabinho, tranquila como sempre. Talvez tenha sentido a aflição da dona, mas agora queria deitar na cama junto a ela e sonhar que devorava peixes. Aliás, a cadelinha merecia, ficou quietinha até chegar em casa. Recebeu um afago, deu um latido manso e dormiu. Somente Lia não dormia. A essa altura a luz da sala estava apagada e todos tinham ido deitar com seus problemas e soluções. Os olhos verdes da moça permaneciam abertos, da cama podia ver o céu, a lua cheia e a madrugada que corria bonita e mais clara que nos outros dias. Os pensamentos estavam envoltos no susto e no encontro de antes. Não era possível que tivesse vivenciado uma cena de sonho.
No dia seguinte, viu o rapaz junto a outros pescadores. Perguntou a sua irmã quem era e ela não sabia. Caminhou por perto, olhou discretamente e viu que olhava para ela também, mas guardou a curiosidade para si, não queria chamar atenção. À noite, quando a família jantava seu Abelardo fez o favor de acabar com a dúvida:
-Olha Iraci, ontem chegou um rapaz aqui na aldeia, Davi o nome dele. É um menino bom, sabe pescar também.
-Eu vi ele por ai mais cedo, porque veio pra cá?
-Parece que o pai morreu, a mãe foi para a cidade e ele quis vir morar com o Cláudio, que é tio dele. Disse que é para não ficar longe do mar. Conversei rápido com ele, sei também que morava naquela aldeia vizinha, aquela que a sua irmã mora.
-Sei, sei. Tá certo deixa o rapaz sossegado. Vamos jantar que a família tem outros assuntos importantes para resolver. Inclusive conte as novidades, dona Açucena.
Já depois das discussões da família Lia deitou-se na cama e ficou pensando nos sonhos, no rapaz (que agora tem nome), na vida, no mar, nas estrelas. Nada faria com que dormisse. Ao seu lado Sereia olhava o mundo sossegada e fora dali a terra fazia algum movimento ao redor do sol. Virava e revirava na cama e o sono não vinha, então decidiu andar até as dunas, encontrar a vida.
O rapaz outra vez estava lá. Olharam-se e sorriram como velhos conhecidos. Apesar disso a moça ainda tinha receio, imagine, o rapaz simpático do dia podia ser fera à noite e ali ninguém ouviria um pedido de socorro.  Por isso Lia ficou um pouco afastada, com o coração acelerado, sem saber como agir. Ele permanecia quieto e não queria assustar a moça, porque ele também tremia.
Davi costumava visitar as dunas já há alguns meses. Depois que o pai ficou doente, começou a entrar na jangada e ir até a aldeia vizinha pensar na vida. Quando o dia estava perto de amanhecer e a maré baixava, entrava outra vez no barquinho e seguia para mais um dia de pescaria. Era um jeito de fugir do mundo e numa dessas fugas, quando andava pela praia, viu uma moça branca, de cabelos pretos, com um vestido branco rendado. Parecia um reflexo da lua pela praia. Não sabia, mas era Lia.
No meio do encontro, os dois assustados, Davi estendeu a mão.
-Gosto de ver o mar, sentar nas dunas. Nunca vi outras pessoas aqui, essa hora, mas não se assuste não. É problema para dormir? Ver o mar vai te fazer bem, se bem que... a gente vê o mar o tempo todo.
  E sorriram.
-Dê licença, não quero atrapalhar a sua contemplação. É problema para dormir sim, problema na família, problema no coração. Aliás, meu nome é Lia. Você é Davi que eu sei e sei também que chegou esses dias por aqui.
-As pessoas sempre comentam quando chega gente nova, se você sabe meu nome, acho que deve saber que Cláudio da quitanda é o meu tio.  Você deve conhecê-lo, todo mundo aqui se conhece. Como é que uma moça tão nova já tem tanto problema na vida?
Conversaram até passar o medo, compartilhando angústias, fragmentos da vida, coisas pequenas que se compartilha com o cuidado de quem se conhece a pouco tempo. A conversa se estendia até o sol iluminar a praia com os primeiros raios e lua levar as estrelas para deitar. Davi acompanhava Lia até em casa e seguiram se encontrando nas dunas por meses.
-Qual o sentido da vida? Lia perguntava.
-A terra gira ao redor do sol, que é uma estrela enorrrrme. A gente vive ao redor dele, se alimentando dessa luz, do mundo e das coisas. Acho que o sentido da vida é viver, além do existir. Entende? Eu quero viver, quero construir um barco, me jogar pelo mundo.
-Eu já vivo aqui, vivo em paz. Sinto que consigo conhecer o mundo daqui, quieta, só olhando. Lá na frente tem o farol e depois tem mais mar e mais gente e nenhuma novidade. Todo mundo é igual. Aqui na vila as pessoas não conversam muito, mas têm as suas questões. Todo mundo quer encontrar um sentido nessa vida, seja pescando ou cuidando de uma quitanda, como seu tio. Eu quero ser mãe, cuidar de bichos, ter uma casinha de madeira, amar e continuar olhando o mundo, assim, como agora.
- Obrigado por existir Lia, de verdade. Você é linda e eu não falo só da aparência, é linda no jeito de existir mesmo. Eu já te vi com esse vestido branco andando pela praia e eu me senti tão bem. Você me lembra a lua sabe? Até seu nome faz lembrar a lua! Posso te abraçar?
-Pode.
Era amor, tinha gosto de amor e foi anunciado antes de ser. O caminho de Davi tinha cruzado o de Lia e o nó do amor só seria desfeito se assim um dos dois escolhesse. Beijavam-se através das distâncias dos minutos, percorriam horas de afeto deitados sob uma colcha de crochê que ela trazia de casa todas as noites.  Envolvidos os corpos, nada era pecado. Quem dera ser um peixe... os dois mergulhavam um no outro, entrelaçavam as pernas e tudo desaguava no mar, fosse o mar dos sonhos ou o mar cristalino banhado pela lua. Nadavam nus, libertos do mundo, naufragados de amor e felicidade. O amor também tem gosto de sal.
-Você tem o coração lunar, eu te amo. Eu sei, eu sei Lia, que você é meio misteriosa, meio calada, mas esses mistérios não importam tanto, sabe? Eu gosto mesmo é da sua verdade, de te olhar bem no fundo dos olhos e ouvir os teus segredos. Viu?
-Viu. Você tem os olhos de sol, Davi, sabia? O problema é que a gente se encontra essa hora, mas naquele dia em conversamos de manhã eu vi a cor dos seus olhos. São tão bonitos, parecem fragmentos de sol, te amo. Se tivermos um filho ele vai ser uma mistura de sol e lua. Que bonito, te amo, te amo muito.
Assumiram um namoro discreto, com a bênção dos pais de Lia e de seu Cláudio. Namoravam na sala, como se ainda não conhecessem certos prazeres. Andavam de mãos de dadas na frente dos outros, mas o mundo desconhecia os encontros noturnos e as alegrias que só as dunas presenciavam. Numa noite, se amaram como de costume. Ele dentro dela e o mundo esmaecendo, cada vez mais forte, a aurora rompendo a noite e o corpo dele indo mais e mais forte. Olhavam-se nos olhos enquanto o dia ficava azul, nunca estiveram tão bonitos.
-Eu te amo, Lia.
-Eu te amo, Davi.
Nesse tempo, o mundo fechou-se só para os dois, mas as coisas ainda aconteciam. Zeca finalmente casou-se com Açucena, fazendo cessar a agonia da família dela e causando um enorme estrago no coração de Melissa. Não se pode construir um amor destruindo outros, a paixão cega. Talvez os tempos de amor tenham acabado, ninguém é feliz para sempre.
O coração de Lia parecia pesar. Davi disse que estava cansando de ir para as dunas, as madrugadas insones não lhe rendiam mais uma boa pescaria. Encontraria Lia de durante o dia, a beijaria à noite e quem sabe compartilhariam os corpos em lugar escondido na praia, sempre de dia. Foi então que ela começou a sonhar com uma moça morena de cabelos cacheados. Toda noite essa moça, que vestia uma saia laranja e uma blusa marrom, subia as dunas e abraçava o seu amor. Lia chorava, gritava, não conseguia se mexer, enquanto os dois sorriam, leves de amor.
O pesadelo não tardou a ser real. Maia apareceu na vila junto com a uma criança e procurava por Davi. Só não usava a mesma blusa marrom do sonho, mas os cachos, a pele morena e o sorriso já não eram novidade. Ela tinha gerado um filho dos dois, foi o primeiro amor dele, que findou sem razão aparente. Findou mas deixou um fruto, uma vida que precisava de um pai.
Davi andava insosso, sem sentir o gosto da vida, sem conseguir olhar nos olhos de Lia. Tinha recebido uma carta de Maia e perdia o sono sem saber o que fazer: amava Lia profundamente, mas o amor antigo ainda cutucava o seu coração. Dois amores tão diferentes não podiam caber num peito só.  Uma era mulher do dia, morena, sorridente, expansiva, tinha o dom da conversa, intrigava querendo, não pensava tanto: fazia. A outra era mulher da noite, calada, tinha mais o dom da palavra que o da conversa, dizia coisas fortes e certeiras depois de muito refletir, era misteriosa sem querer, pensava muito: não fazia.  De que interessa comparar dois seres humanos? O primeiro amor tinha força somente porque tinha vindo antes, mas acabou naturalmente porque faltava certa magia. O segundo era intenso, forte, leve, mágico, parecia sonho, era lindo, mas não tinha gerado uma vida.
Davi levou Lia para um canto recôndito da praia, um pedaço de terra rodeado de pedras. Queria dizer tudo para a mulher que ainda amava, queria chorar e desabar em sinceridade. O tormento precisava ter fim. Abraçou-a com força, beijou-a com amor, acariciou seus cabelos e olhou-a fixamente nos olhos. Disse o que lhe tirava a força. Não sabia que teria um filho, não sabia que Maia voltaria, não sabia como seguir e levou um tapa na cara. Lia chorava, soluçava, não queria que ele chegasse perto. Desesperou-se, gritou, xingou. O mundo desabou. Se aquilo não era a sensação de morte, chegava perto.
O céu lilás perdeu o sentido, não havia amor que florescesse na dúvida ou na presença de outra pessoa. Onde se esconderam as estrelas? Cadê a imensidão do mar? Que pecado cometeu para que seus sonhos fossem convertidos em pesadelos? Como era estranha a vida. Se encontrasse com Maia por aí, talvez fosse amiga dela, talvez a cumprimentasse e até elogiasse a sua beleza. Celebraria a vinda de uma criança ao mundo assim como celebrou o nascimento do seu sobrinho. Mas não, sentia ódio, jamais por um bebê, mas pela vida que a colocou dentro de um amor que nunca a pertenceu. Que fazia ali, entre duas pessoas que se amaram no passado? Queria apenas o seu amor, o seu agora, as suas madrugadas nas dunas.
Quão frágil é o amor? Numa noite se amavam com intensidade até o amanhecer, noutra noite era ela que chorava sozinha na mesma praia, diante da mesma paisagem. As palavras de amor dissolveram-se, talvez nunca tenham existido.
Eu, que fiquei contente porque ele existia, agora queria nunca tê-lo conhecido. O que é que faço se não consigo dormir? O que eu faço se me derramo no mar, nado até sentir cãibra e depois saio exausta? Sou covarde se não tenho coragem de me afogar? Sou forte porque encaro a vida? Sereia quer brincar comigo e não tenho mais ânimo, o povo lá de casa me pergunta sobre Davi, mas eu nem quero saber. Ontem ele mandou uma carta, pediu para Zeca me entregar... se desculpava, aquele ingrato. Disse que queria me encontrar nas dunas, de madrugada.
-Oi, Davi
-Perdoa, Lia. Não fiz por mal, pensei que minha relação com Maia já tivesse um ponto final. Você foi a novidade mais linda que me aconteceu, não me sentia assim há tempos, se é que já senti isso por alguém. Só que eu decidi ir embora, ver o mar do mundo.
-Ir embora? Com ela?
-Não, vou mandar dinheiro para meu filho, vou dar um jeito de cuidar dele. Eu  magoei você agora, Maia no passado e fiz um filho. Meu coração está perdido, louco, quer ir para o mar.
- E o meu amor não basta para você ficar? O meu amor não é nada? Você indo embora essas dunas perdem a razão de ser, meus sonhos... meus sonhos. Eu te falei que sonhei contigo, isso não pode ter sido em vão. Eu já te amava tanto antes de te ver aqui... Davi, eu sonhei com nosso filho correndo por essa praia, eu imaginei nós dois cantando aquelas canções praieiras que você gosta, eu pensei em cada detalhe da nossa casa, com os meus desenhos pendurados, as coisas cheias de conchas, os filtros dos sonhos balançando com a brisa do mar e nós dois deitados na rede. Eu amei sozinha então? Eu estava louca quando a gente se olhava nos olhos? De que serve meu amor se não faz de mim nem uma desilusão amorosa para você?
-O seu amor foi tudo para mim. Tudo. Meu coração enlouqueceu quando descobriu que tem um ser humano que veio de mim no mundo. Você ainda é tudo, eu ainda te amo, mas preciso ir para o mar, não posso estar contigo agora. Você, Lia, merece um homem inteiro e agora eu não sou nem metade.
-Sim, você é um nada. Vai embora mesmo, covarde. Eu te amava, seu desgraçado, eu me entreguei a você. E te dei o meu coração e você vai embora. Vai junto com o mar. Desgraçado.
Nessa noite Lia saiu das dunas e foi até a ponta de areia, dormiu escondida pelas pedras, fez da areia travesseiro e cobriu-se com a manta que antes era sua cama. O dia amanhecia bonito, o canto das gaivotas parecia ter sentido e dentro de si o resto era vazio. Observava tudo. A verdade é que estava sempre sozinha, o amor era um pedaço de doce que acabava sem que se percebesse, era um infinito com ponto final, um sonho bom que acabava quando alguém de casa gritava na melhor parte e o sono acabava repentinamente. O coração doía tanto que a preocupação de seus pais já não lhe era motivo de angústia. O mundo que explodisse afinal. Para que paixão, para que sexo, para que prazer, areia, sal e mar? Ficou horas sentada sem saber do tempo. Ao longe Davi ia embora num barco...
A dor que ficou é uma velha conhecida e os sonhos perderam a graça. Voltar no tempo era inútil, chorar também. Não sabia se esperava a volta dele, que talvez amasse outra mulher pelo mundo. Qual o seu destino senão casar com algum rapaz da aldeia, quem sabe aprendesse a amá-lo com o tempo. Sabia que amaria os filhos que tivesse e iria adiante com a ideia da casa enfeitada de desenhos, conchas e filtros dos sonhos. Não sabia quem seria seu companheiro ou se teria um. 
Por que a vida não lhe permitia prosseguir com o homem por quem era apaixonada? Por que não tinha a chance de amar e ser amada? Por que o amor precisava ir embora? Sentia que poderia dar amor a qualquer um, mas a magia não era de sua escolha. Ninguém mais preencheria as suas madrugadas da mesma forma, ninguém mais invadiria seus sonhos, ninguém. Nenhuma presença representaria o amor de antes, nada. Aquilo só pertencia aos dois, as suas memórias e aos seus sonhos. O sonho foi um espanto bom, é assim que as coisas mais lindas acontecem: do nada.
Então é fato que amei sozinha. Melhor estar sozinha do que amar sozinha.
As lembranças lhe inflamavam o peito e as lágrimas a faziam lembrar o gosto do sal. Do sal. Os espaços antes preenchidos por ele agora eram apenas registros do universo. Estava mais uma vez só, resignada ao compasso de antes, assim era a vida. 
Mais tranquila, passava as madrugadas nas dunas, com o coração lunar a contemplar a praia. A noite azul e a lua bonita eram seu amparo e sossego. De vez em quando cochilava perto das pedras e nadava sozinha, seguindo a luz da lua. No entanto, ainda sonharia com os outros lugares escondidos da aldeia e com o novo amor que mar lhe traria. 



domingo, 15 de julho de 2018

Detesto bagunça




Detesto bagunça, puta que pariu. Essa água suja na pia, essa água parada nas panelas ainda com comida dentro, coisa que faz a festa das baratas. Detesto esse amontoado de móveis que não me deixa deitar na rede e ainda enche o meu corpo de hematomas. A parede verde cheia de manchas, essas revistas antigas que estão cheias de lições imbecis e misóginas. Puta que pariu. Esse ar fica claustrofóbico quando paro para reparar nele.
Seiri, seiton, seiketsu, seiso e shitusuke. Essa merda serve de quê? Aqui serve de nada. É impossível dar um passo, olhar para as coisas jogadas. Lençóis com urina de gato, toalhas usadas, quinquilharias sem sentido. Um apego inútil. Livros, quantos livros! Livros repetidos, apostilas, letras burras, estúpidas. Vai trabalhar para arranjar dinheiro. Se muda, então. Tá achando ruim vai embora. Pois é, cadê a tua gratidão? Olha bem, tem um teto em cima da tua cabeça, isso é melhor que as telhas que abrigam ratos e pingos de chuva, lembra? Isso é melhor que a rua, é melhor que o cárcere. Agradece, ingrato.
Acendo um cigarro, sorrio da minha própria miséria, como sou pequeno, vazio, inútil, fraco. Mesmo assim detesto bagunça, essa coisa não me deixa pensar direito, não deixam a vida fluir. Esse monte de roupa velha cairia bem em quem não tem nada para vestir. Para que tantos lençóis. Imagina um terremoto, um incêndio, uma guerra e aí perder tudo. Um trauma imenso e eu aqui reclamando da vida. Por outro lado, existem os acumuladores e esses são doentes. Estou falando de extremos, péssimo. Já eu sou um merda, estou reclamando de graça, pelo visto é melhor viver na bagunça mesmo.
Pera aí, uma coisa nada tem a ver com outra, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Quem foi o imbecil que inventou essa merda dessa frase? O que não tem nada a ver é essa frase. Melhor dizer: o que tem a ver o cu com as calças? Estou tentando encontrar um sentido para não reclamar, mas minha sensação é legítima. Desde pequeno odeio bagunça, odeio ambientes escuros, coisas muito fora de lugar. É uma coisa minha, um negócio meu e foda-se, eu só funciono com a organização. De doido e bagunçado basta eu.
Tenho acordado às três da tarde, não produzo nada, bebo, tenho gastrite, um incômodo miserável na boca do estômago. Quanto mais me afundo na minha preguiça e mesquinhez, mais fico puto com a bagunça da casa. Fico puto em não poder fazer nada, fico puto comigo. Ando com calção, mal tomo banho, me alimento em horários irregulares, acumulo tarefas, procrastino.
Talvez aquele chá me faça abraçar a geladeira. Uma dose de amor que me faça ver o mundo rosa, acordar cedo, botar a roda da vida para girar. Uma leitura branda que me ajude a escrever coisas mais leves, que me faça esquecer o velho Buk. Velho, genial, escatológico, tarado, abusivo. Queria ver as moças assistindo aos impropérios que ele falava à última esposa, Linda.  Absorvi um pouco dele porque já tenho em mim essa coisa ranzinza, essa alma velha, esse tom arrogante e de deboche para com as pessoas.
Preciso sair disso, preciso sair dessa bolha. Quando criança, as casas de familiares serviam, era meu jeito de fugir da bagunça. Agora são eles que me expulsam e estão certos, o mundo tá aí fora, chamando e eu aqui. Parece que para falar umas coisas pesadas só serve a imagem de homem. Que desgraça uma mulher largada, com pelos nas axilas, três dias sem banho. Suja! porca! Bradam os seres humanos mais limpos do planeta, aquelas que não carregam fezes no intestino. Uma vez li que Mussolini não queria aceitar que de fato era humano e carregava fezes dentro de si.
Eu, que detesto bagunça, sou um caos em corpo, preciso de uma oração. Para piorar as coisas, tem ainda a bagunça que ela deixou. Ela que se misturou ao meu sangue, que passeia nas minhas veias. Ela, para quem eu disse ‘eu te amo’ e depois pensei que não amava, e depois não quis mais dizer nada. Ela que não me ama, mas me enlouquece, me faz de besta, que brinca com meu coração. Ela que viaja e faz sabe-se lá deus o quê, e eu peno, estúpido, louco para viajar também, esquecer dela e arrumar o que fazer. Ela é bagunceira, mas produz e ganha dinheiro. Ela é mais inteligente que eu e tá nem aí para nada, nem para mim.
A vida de ninguém é organizada. Talvez, nos esconderijos de casas lambidas e brilhantes exista alguém com transtorno de ansiedade. Sofrimento. Eu sou ansioso, talvez seja por isso que deteste bagunça ou talvez seja só porque nasci assim. Fazer o quê? Já tentei explicar essa coisa para um monte de gente, mas quem entende esse meu pensamento estruturado que só funciona com as coisas em ordem? Que jeito de viver. Acendo alguns cigarros, estou predestinado a varar a madrugada acompanhado de uma garrafa de cachaça. Sou um beat que bebe em casa, não viaja e detesta bagunça. Péssimo.

domingo, 10 de junho de 2018

Transmutar




Agora mora na parede uma lembrança de quando a vida era cinza e eu me transformei em cor. Isso serve para que eu não me esqueça que a vida existe e que do cimento nasce até uma flor. Meu pensamento-estrutura se inflama diante da bagunça, os espaços que me habitam vivem para se transmutar e não há quem me defina, mas há quem pare para me olhar.   
Ontem era só uma parede branca, hoje são meus olhos em cores, meu rosto em aquarela, um filtro dos sonhos mal feito, Jesus nascendo de uma flor de lótus, o sol e a lua pintados numa tela. É verdade que desconheço as técnicas, sou artista da ilusão, aliás, nem artista eu sou (mas queria ser). Imagine a minha alegria ao dizer: sou artista. Se for preciso fico nua e ninguém verá o meu corpo, mas a alma de outra criatura. Sonhei com um livro que poderia ser lançado, dancei em leves passos, fotografei palavras aos pedaços, imaginei palcos que não pisei, olhei para personagens que criei. Prostituta sorrindo na Rua da Areia, moça mansa, mulher astuta. A cara de menina e o olhar de uma puta. Era uma vez, eu: diálogos do meu corpo. 
Sou um rosto pálido na multidão, sou alguém que transa com a arte de vez em quando e vive apaixonada, coitada. Será que a arte me quer? Entre lúcidos devaneios busco dar sentido à vida, elaborando mil alquimias, numa eterna transmutação. Deixo as dúvidas por aí,  eu quero é transar com a arte e parir uma criação.
                                                                                               

Com raras exceções os minerais não têm cheiro

O que você vai escrever  não sabe porque não está escrito







sexta-feira, 1 de junho de 2018

Dança, morena


Vem morena, dança aqui comigo, só para mim. Desde que te vi passando naquele corredor não teve mais jeito. Junho chegou, quero o forró contigo, quero o teu vestido rodado e florido pelo salão. Deixe que eu te carregue em meus braços, te faça sentir ondas de calmaria, te faça fechar os olhos até que sinta teu corpo me apertar involuntariamente. Deixa-me encarar teus olhos e dizer através dos meus que estou aqui, somente para você, completamente besta e apaixonado.
Você querendo, te aperto com carinho, te beijo devagar, te levo para conhecer a cidade, beber uma cachaça num beco do centro. Levo você comigo para ver o mar e um céu de várias cores, levo você comigo para andar por entre as árvores de algum lugar bonito. Se você quiser, me levo contigo para conhecer meu mundo, cheio de jardins escondidos em igrejas. O mundo por onde orbitam teus olhos verdes, um mundo doido, doidinho por você.
Sorri para mim, sorri para todo mundo, sorri, porque o teu sorriso é lindo. Fala da tua vida que eu estou disposto a ouvir tudo: passado e presente, tudo seu me interessa. Mostra os teus gostos, as tuas fontes de arte, as fotos da tua viagem a marte. Você deixando, posso conhecer todo mundo que te rodeia, sem rodeios, sem frescuras. Apresenta teus amigos.
Dança, morena. Dança nos teus sonhos e depois me conta como foi. Avisa se o céu caiu na noite passada, avisa se você deu uma passada pela praia enquanto dormia. A tua aura clara é coisa de se admirar. Eu sei morena, tem mais gente te querendo, mas não tem problema, tô quieto, querendo te esperar.
Tira uma foto dos meus olhos, compartilha teu cansaço, sei que você tem estudado muito. Deixa tudo de lado por algumas horas que eu te faço uma massagem. Vem tomar um café, um chá, um banho, quem sabe. Mas, como te disse, não tenho pressa, junho começou agora. Dança, morena, ainda que somente em meus sonhos. O forró pode esperar.




terça-feira, 15 de maio de 2018

Milágrima



Em caso de dor ponha gelo, mude o corte de cabelo, mude como modelo, vá ao cinema, dê um sorriso, ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo. Se amargo for já ter sido, troque já esse vestido. Troque o padrão do tecido, saia do sério, deixe os critérios, siga todos os sentidos. Faça fazer sentido. A cada mil lágrimas sai um milagre.
Caso de tristeza vire a mesa, coma só a sobremesa, coma somente a cereja. Jogue para cima, faça cena, cante as rimas de um poema, sofra penas, viva apenas sendo só fissura ou loucura. Quem sabe casando cura, ninguém sabe o que procura. Faça uma novena, reze um terço, caia fora do contexto, invente o seu endereço. A cada mil lágrimas sai um milagre.
Mas se apesar de banal, chorar for inevitável, sinta o gosto do sal, do sal, do sal. Sinta o gosto do sal. Gota a gota, uma a uma. Duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre. A cada mil lágrimas sai um milagre.
Cante as rimas de um poema, sofra penas, viva apenas, sendo só fissura ou loucura. Quem sabe casando cura, ninguém sabe o que procura. Faça uma novena, reze um terço, caia fora do contexto, invente seu endereço. A cada mil lágrimas sai um milagre.

-Itamar Assumpção e Alice Ruiz



quinta-feira, 19 de abril de 2018

Mulher-lua


Sou noturna, mulher-lua, filha do oriente
Nasci em outubro, ao findar de um poente
Fiz na areia o meu sanctum celestial,
Cristal violeta posto num pedestal
Sou praia à noite, luz azul, lua cheia
Sou praia à tarde, céu lilás e lua vermelha
Às vezes cigana, às vezes índia, uma vez sereia
Carrego raízes de mulheres fortes
Um sussurro me diz sobre o amanhã
Não temo tempestades, sou moça e anciã
Notívaga, vagante pela madrugada
Meus olhos-esmeraldas são janelas
Que se abrem para a estrada
Sou noturna, mulher-lua, filha do oriente
Sou praia à noite, luz azul, lua cheia
Sou um corpo no mundo
Uma estrela que nasce
Uma aurora
Um grão de areia


Das definições de si



Eu sou um estar no mundo. 

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Deixe cair



O amor há de brilhar infindo, insano e protegido por aí. O amor há de subir montanhas, chapadas e problemas, há de dormir na praia num fim de tarde e de compartilhar o sono no calar das estrelas. Ele há de cruzar comigo em algum corredor da vida e há de olhar nos meus olhos por minutos constantes. Ele verá o meu corpo pelo mundo e se encantará não com meu mistério, mas com a minha verdade, e, diante dela, quererá conhecer o meu coração e abrirá a vida para mim. Quero crer nas aventuras e nas mãos que não se largarão, quero cruzar a linha do tempo num eterno agora. Eu que sempre sei, quero saber quando chegar. Quero ver o amor sem desculpas, só querendo ficar, me levando para longe, sem pressa para voltar. A fidelidade no meio das coisas banais, planos, sonhos-filhos, sentimentos não-verbais. Quero crer na alegria de ser e saber da plenitude do que não se pode explicar. Não mais me importa que nada disso eu viva, o amor não se pede, não se encontra, ele é um tombo no abismo, é preciso cair, não se jogar.




quarta-feira, 11 de abril de 2018

Sobre o processo da grande criação




A grande arte é o que tento fazer agora, munida de um punhal e enormes olheiras. Cansei de estar fecunda, grávida, inebriada de ideias e de ter pesadelos. Escrever este trabalho é a minha maior renúncia, é o que me move ao fim da estrada trilhada com noites insones e a alma perdida em indagações sobre estruturas sintáticas e textos clássicos.
 Só a escrita suja me toca, nada da escrita acadêmica chegar, estou um tanto aborrecida. Anjo da guarda me ajuda aí, porque a ansiedade há dias está roendo a minha carne. Estou inerte observando o tempo escorrer enquanto o devaneio do futuro me engole. Sinto-me derreter pela madrugada com meus olhos verdes esbugalhados diante de livros, papéis e a luz artificial do computador. Ao meu lado minha gata dorme, nem sonha com meus pesadelos.
Sêneca, seja meu camarada, fale um pouco mais da sua vida, sou toda ouvidos para você. Por que Calígula não te matou? Como foram os anos no exílio, tens aí alguns trechos das tuas pesquisas etnográficas? Gostei muito do movimento dialético das tuas obras, por enquanto estou esquadrinhando estruturas do teu diálogo e pesquisando sobre diatribe. Quanto tempo há na brevidade da minha vida para saber mais sobre ti?
Fui embora do mundo e agora nada além dos livros e artigos moldados em outros idiomas pode me consumir. Aliás, me devoram também aqueles olhos verdes, tão gentis.  Esse capítulo precisa sair. Madrugada que corre feito gato desembestado pela casa e derruba as minhas certezas. Estou morrendo nas esperanças, estou morrendo entre os livros, estou já morta pelo peso que essa grande arte tem. Sêneca grita para mim: coragem!
Talvez um banho me anime.


sexta-feira, 6 de abril de 2018

O que sobrou de mim


O que eu carrego dentro de mim
Talvez eles só saibam mais tarde
Quando eu me for
Depois de terem lido meus versos
Revirado minhas gavetas
Rasgado meus diários
Visto meu corpo
E não haverá nada de mim
Para eles saberem
O que há em mim
Eu também não sei
O que sei, não mostro
O que eu mostro, já foi embora
Por fim,
Não sobrará mais nada de mim
-Para eles saberem-





Ao meu filho



Dorme sereno meu menino, dorme entre as nuvens e com os anjos aí no céu. Descansa enquanto ainda não tenho como te dar conforto nesse mundo. Sua mãe ainda tem muito que trabalhar. Já sei teu nome há tanto tempo, meu filho, que é como se eu pudesse te conhecer. Quero te mostrar um lado bonito do mundo, te ensinar a amar os animais e respeitar as mulheres. Conheço a minha impaciência e sei que nem sempre vou ser o que você queria, mas com certeza me esforçarei para ser aquilo que precisavas.
Não sei do teu rosto, ainda não conheci o teu pai, e, se o conheço, não o reconheço como alguém capaz de ser terreno fértil comigo. Espero o dia em que eu me torne árvore da vida e seja terra sagrada para o fruto da tua vida brotar. Quero que saibas das mulheres fortes e negras que vieram antes de mim, que eram curandeiras, que foram escravas, que são nossas raízes e parte do que sou hoje e um dia serás tu também.
O futuro não nos reserva dias melhores e o país fervilha em caos. Não sonhei com esse futuro, não sei do meu futuro, mas sonho com você. Dentro de mim, desejo que você tenha o olhar manso e regado de empatia para as dores alheias, que você venha com luz, nutrido dos seus antepassados, amado pelos seus, respeitado no seio da família, querido e forte na vida. Não precisa ser gerado dentro de mim também, basta vir pelo amor, da cor que for e como a vida quiser. Espera um pouco filho, mas saiba: o abraço da tua mãe sempre te espera.




terça-feira, 13 de março de 2018

Período fértil



Chico fez a música para Bárbara, ele é doido de amor por ela. Fogo na caldeira, mel doce que vem da mulher, a vida brotando e fervendo em paixão. Também estou nua, mas não sou Bárbara. Estou fervendo com as palavras, num período fértil de mim, delirante por crias que rejeitarei adiante, radiante por crer em livros de títulos indefinidos.
Todo processo deriva de dias escuros, noites longas, choros intermináveis, incertezas ensurdecedoras. Isso que me mata é o trabalho a parir, criança que precisa nascer. Em paralelo as palavras tomam-me a mão e não se importam com Roma ou filosofias, elas querem a minha nudez, querem o mundo como ele é.
O centro da cidade sujo, o velho tarado do mercado central, a praia noturna, as amigas de sempre, os passeios felizes, a beleza até na feiura da vida. Não há como conter isso que escorre, se sou da arte, que eu me derrame em palavras. Fogo em meus dedos, nua em período fértil de mim, deixo as palavras escorrerem.

Estou em período fértil de ti
Vem comigo maruja
Marulhos marejam meus olhos
E o que vejo avulta
Preenche minha aldeia
Onde sou já terra alheia
A intuir e entoar
Cantos de receber
E dar





sábado, 10 de março de 2018

Cigana



Ela apareceu em meus sonhos com batom vermelho, tiara de flores e os olhos verdes arregalados para mim. Sorria, me aconselhava com firmeza e eu entendi que já a conhecia. Moça que me acompanha, chora comigo, sussurra verdades, me protege de mentiras.
Cheiro de alfazema, beleza do sábado, limpeza no meu coração. A cigana de oxum colhe lírios em campos místicos nas cidades que ainda não conheço.  Quero me jogar no rio, deixar a minh’alma respirar na beleza do rio.
Eu sei que ela gosta daquela saia florida. As mãos balançam o leque, os quadris rebolam com leveza, os braços fazem movimentos bonitos, ela vem do oriente e do oriente eu sou filha. O meu corpo já não é mais meu. Fecho os olhos ou estariam eles abertos? Movimentos de cigana. Não ando só. Meus olhos verdes são os dela também. Encaro o espelho, não tenho medo do olhar que me enfrenta, estou de batom vermelho e tiara de flores na cabeça. A cigana sou eu.

Inconstante



É o que eu sou. Libriana inconstante, pessoa inconstante. Para além das estrelas, signos, vênus, marte e lua. Eu sou um pêndulo, ou melhor, eu sou uma balança desregulada, talvez. Eu sou alguém que quer entender alguma coisa da vida. Eu sou romântica, mutante, sou uma solitária sempre acompanhada.
Para ficar perto de mim é preciso me amar, me amar muito. Não pode me prender, mas tem que me dar segurança, mesmo que eu não ofereça nenhuma. Tem que me querer mesmo com o ritmo insano do meu pêndulo. Sei amar com força. Vou querer morrer por ele, vou saber esquecê-lo uma semana depois e vou sentir saudades em alguns meses.
Eu amo sem saber que estou amando. Gosto da solidão e dentro dela desejo o amor. Sou delicada, cuidadosa, quero planejar as situações, medir o tempo de cada coisa e quando menos percebo, estou quebrando as regras antes estabelecidas por mim.
Não sei como existir de outra forma, mas é a única forma que conheço. Talvez a minha pouca idade não me ajude muito, talvez eu mude, talvez não. A duração dos meus relacionamentos é diretamente proporcional ao amor que sinto. Repito, para estar perto de mim é preciso me amar, e, se se isso durar, é porque estou amando também.
Liberdade e intensidade, tudo junto. E por ser tão inconstante, eu aprendi a me amar dessa forma. Eu tenho um coração enorme, que pulsa, que ama e que quer viver. Sim, eu sei ser constante. Conheço a lealdade, a calmaria e o embalo da rede. Tenho laços fortes, amizades longas e a fidelidade de um cão.
O meu lado solto ainda não encontrou um porto seguro. Ele só quer dizer: eu que sempre fui tão inconstante, te juro meu amor, agora é pra valer. Só que por enquanto ele não quer dizer nada, ou nem sabe o que dizer.