sábado, 12 de novembro de 2016

O amor

“O Amor”,  poema de Vladimir Maiakovski.


Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.

Vladimir Maiakovski (1893-1930)


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Mensageiro beija-flor/ Poema Incidental: Sutil Vontade



Nanado Alves

Queria lha mandar um beijo
Mas não achava um portador
Pra lhe falar do meu desejo
Pra lhe dizer como eu estou 
Me comportei como criança
Que no brinquedo tropeçou
Por isso estou aqui pedindo
pra você que esta partindo passarinho voador
Nem que seja de passagem
entregue a minha mensagem
faz pra mim esse favor
Leva no bico uma canção
que tenha a mesma cor e cheiro dela
Aproveitando pergunta pra ela, meu Deus,
como é que fica o nosso amor
Do fundo do meu coração
não vivo sem a luz dos olhos dela
Explica tudo direitinho a ela, por Deus, 
meu mensageiro beija-flor.
____________________

Poema Incidental: Sutil Vontade (Santanna) 

Ganhei uma canção branca
Como o coração teu.
Mas só que não sei cantar, 
Nem a ti posso chegar
Agora já, nesse instante,
Eu pedi ao passarinho,
Que sabe cantar bastante,
Para que leve a cantiga
Em forma de um presente
E sutilmente lhe diga,
Traduza a minha intenção.
Fazendo assim a canção
Penetrar no teu ouvido
E tocar na tua mente,
Contagiando a tu’alma
E tu, com serena calma,
Receba o recado meu.


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Um homem, uma mulher

Crônica de Affonso Romano de Sant'Anna


Passo por uma rua e vejo um homem e uma mulher. Não se conhecem e estão parados ao lado um do outro num ponto de ônibus. Cada um olha para um lado, distraídos, fechados em sua imaginação e problemas. Não adianta descrever-lhes as características físicas, suas classes sociais e idade - São simplesmente um homem e uma mulher. Inúteis entre si. Cada um é cada qual, cada um é cada onde, cada um é cada como, cada um é cada quando, cada um é cada. E se ignoram. Não sabem que acabei de vê-los. De vê-los no passeio do meu texto. Devem estar ali há uns desperdiçados quinze minutos, à toa. À toa como uma gazela à toa à beira do lago que não vem. À toa como um agricultor à beira do verde que não vem. À toa como o astrônomo fitando a estrela que não vem.
Esperam. Esperam o mesmo transporte. E se desconhecem profunda e urbanamente. Estão num mesmo ponto de ônibus, mas são dois pontos. Mas dois pontos pressupõem que algo vai acontecer. E dois pontos estão sempre no meio de uma sentença em construção.  Mas estes são dois pontos sem vibração. Não há sujeitos, predicados e complementos entre eles. Não se falam. Não se olham. Não se vivem. Parecem-se mais a um ponto-final. Poderiam ser um ponto de partida. Mas há algo na máquina de seus corpos estacionados que não dispara a ignição. Já nem importa se vivem na mesma rua, mesmo bairro, pois parecem morar na mesma cidade, mas nada se desencadeia entre eles. De nada adianta conferir que têm externas identidades: duas pernas, dois braços e uma faminta solidão na boca.
Se desconhecem agressivamente e não posso ajudá-los. Deveria gritar do outro lado do instante algum código que juntos decifrassem? Deveria disparar um alarme para que suas carnes se incendiassem? Deveria, sei lá, lançar um manifesto para que seus sonhos se manifestassem? Deve ser por isto que Deus às vezes manda um cometa, um profeta, um arco-íris, uma tragédia qualquer no estremecimento das ferragens e ossos. É para que os homens  convirjam num mesmo ponto, num mesmo instante e rompam a segregada solidão procriando a jubilosa parceria.
Eles estão ali como duas estátuas na mesma praça. Eles estão ali como dois colegas de escritório, sorrindo cordialidades superficiais, mas sem qualquer intimidade. Eles estão ali como dois corpos estendidos na areia do verão, queimados e lindíssimos e inutilmente apartados, embora o calor do sol os tente fundir num mesmo e luminoso orgasmo. Já estou no meio de meu olhar textual e até agora nenhum olhou para o outro. Se acontecesse, súbito, que um raio desses e filmes de ficção científica se abatesse  sobre um deles e só deixasse no chão, como resto, uma sombra, o outro jamais poderia revelar que rosto tinha o seu inútil companheiro de espera. Se alguém, súbito, sequestrasse um deles, o outro seria incapaz de contar à polícia sequer a cor de seus cabelos ou o menor sonho exposto nos olhos do que sumiu. Que terrível, que incomensurável, que intransponível a solidão no corpo de dois desconhecidos. Que triste, que aviltamento, que desperdício entre dois desconhecidos se aniquilando num duro silêncio, na mesma rua, num mesmo ponto de ônibus, na mesma companhia  inútil. Tão pungente como dois casados que durante 35 anos fizeram amor sem se amarem. Tão desvinculado como dois condenados à morte que chegam ao mesmo patíbulo  na mesma hora, por duas e inúteis trágicas estórias.
Estão distantes um do outro como dois continentes sem conteúdo. Desabitados, portanto, nas próprias paisagens. Vontade e ímpeto não me faltam de chamar agentes  de turismo e conectá-los pelo mar dos beijos, fios de paixão pelos cabelos e o vôo das mãos desembarcando, no aeroporto, afetos. Esses dois andróides vieram de diferentes galáxias. Precisam ser apresentados. Estão indo para o mesmo lugar e estão cosmicamente desamparados. Vou apresentá-los um ao outro. Quem sabe florescem? Vou pôr a mão de um na mão de outro. Quem sabe se aquecem? Vou pôr um no olho do outro. Quem sabe se enternecem? Dois corpos que antes foram nulos e foscos e se inscreveram na calçada sem estória, podem se incendiar e abrir clareiras na escura hora. Dois corpos são duas  possibilidades. E se souberem, podem entre si, num ponto do dia, desencadear a aurora.

In: Portão de escola

Vídeo: Subway Love, Max Stossel


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A minha escola



Vivi na escola sonhando em ensinar. Gostava de me imaginar ali, no lugar dos professores. Desisti de cursar Direito, me guiei por um sonho: estudar Letras. Como todas as minhas escolhas na vida, decidi estudar algo novo pra mim e antigo para o mundo: Grego e Latim. De vez em quando eu me arrependo, arranco meus cabelos, choro, enlouqueço. Mas aí eu me lembro: eu escolhi isso.
Os meus passos me levaram de volta à escola. O curso me possibilitou ensinar aquilo que mais amo: Gramática. Gramática pura, cheia de estruturas, nomes e detalhes. A cada dia me reinvento no caminho para ensinar do melhor jeito. Mas, sabe, eu comecei agora, sou “só” uma estagiária. Os alunos me olham de cima a baixo, os funcionários pensam que eu sou aluna e os professores nem me cumprimentam. Meu rosto ainda de menina é um problema. Aqueles que supervisionam meu trabalho não cansam de dizer: você é inexperiente.
E daí? Compro meus livros, coisas de Letras e de Educação. No fundo eu amo isso. Saio de casa cansada, pensando nas coisas do meu curso, mas feliz porque vou pisar numa escola. Meu primeiro emprego tem sido numa escola em que eu estudei, que loucura é vivenciar o outro lado.
Passo e vejo uma criança fantasiada de pirata, olho para o lado e uma menininha anda se arrastando pela parede. Crianças gritam pela escola e as professoras também. Os alunos do ensino médio dizem: “você é muito nova para estar aqui”, os do nono me observam passar pelos corredores, os do sétimo ano testam a minha autoridade. Sabem que não sou professora ainda, são espertos.
Com os meus alunos é diferente. Para eles eu sou a professora do reforço, e aí, sim, eles entram na linha. Mas isso de entrar na linha é só para dizer que nessas horas eles entendem que ali eu sou a professora. No final das contas é tudo uma parceria. Nós rimos, conversamos, procuro saber se eles estão bem. As notas sobem de vez em quando, e às vezes caem... Mas eu vejo uma melhora neles. Faço isso com amor.
Cumprimento os outros funcionários e eles dizem: “oi tia”. Eu penso: “oi tia? Tem outra professora aqui?” Juro que demoro a perceber que isso tudo é comigo. Ouço um aluno levar um carão, mas veja, ontem à noite foi a minha vez de levar um carão na universidade. As crianças chamam pela tia da biblioteca e sujam os corredores na hora do recreio. As criancinhas do maternal brincam e alguma delas se machuca, vejo uma professora carinhosa secando as lágrimas dessa menininha que se machucou.
Eu quis dar aula para um menino pequeno. Ele afastou as minhas mãos, não quis meus conselhos, irritou-se comigo. Ai, desculpe, professor não pode demonstrar fragilidade. E como eu não faço isso? O que eu faço com essas crianças? Meu Deus, elas vão derrubar a biblioteca. Uma professora pede respeito e recebe uma resposta desaforada. Eu olho tudo sem saber o que fazer. Hoje tem apresentação de teatro! Os meninos ficam em polvorosa, riem do namorado da atriz principal, são uns bobinhos. Ai, escola.
Eu estudo para isso? Cansa, e como cansa. Estou cansada e mal começou. Peço conselhos, observo, respiro o ambiente. Eu vivi o outro lado de um jeito intenso. Briguei, chorei, dancei, participei de jogos, fui líder nas feiras de ciências, já tirei zero e já tirei muito dez. Era dedicada e sem saber já amava a escola. Estudava querendo ensinar. Agora que já não sou aluna, eu digo: assusta. Eu mal sei me impor, que loucura é essa? Queria saber do meu futuro, queria saber aonde os meus passos vão me levar. Eu que amo essa loucura toda, vou suportá-la? Eis a escola do meu coração: eu estudei para voltar até ela. 

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Da arte de cuidar dos gatos


Esqueçamos, pois, a caixa de areia e tigelinha com água fresca. Vamos falar agora dos pequenos detalhes que só os donos conhecem. Primeiro de tudo, desapegue-se. Esqueça os seus objetos. A vida agora deve ser pensada para o seu gato. De repente, as coisas todas serão organizadas de modo que ele não as quebre ou danifique. E não há nada de ruim nisso.
Não se importe com o seu sofá ou com ou seu colchão, isso não é mais seu.  Cuidado com os fones de ouvido ou com os fios soltos, gatos, assim como ratos, podem roê-los. Cadarços, roupas, óculos e celulares. Cadarço solto pela casa, esqueça. Roupas, não sei, mas é sempre bom ter cuidado. Óculos e telas de celulares podem ser arranhados com facilidade, muita facilidade (É melhor não ter mais nada).
Sabe a xuxinha de cabelo? Você deve escondê-la. É sempre bom deixar o papel higiênico escondido, gatos gostam disso. Cuide para que os copos não fiquem ao alcance do bichinho, porque, não se sabe como, os gatos sentem prazer em vê-los caindo. Cuidado principalmente com os copos de vidro. Cuidado com as prateleiras. Cuidado com tudo!
Se o dono mora em apartamento, então, a coisa piora. Gatos gostam de janelas. Portanto, se a janela não tem tela de proteção, deve-se mantê-la fechada. É preciso ter cuidado para não deixar a porta aberta. E não posso me esquecer: esconda as suas bijuterias, ah, e o seu fogão também! Brincadeira! Mas é que, o gato daqui quebrou até o fogão! Não se preocupe, com o tempo, essas coisas viram parte da rotina.
         Por último e mais importante, nunca se esqueça do amor. Se não for para amá-lo, é melhor não tê-lo. Cuide, ame, proteja. Gatos, assim como todos os animais, merecem todo nosso respeito e cuidado.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Arte de amar, Manuel Bandeira


Arte de amar. Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estrega o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

In: Belo belo

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Se eu quiser falar com Deus


Se eu quiser falar com Deus 
Tenho que ficar a sós 
Tenho que apagar a luz 
Tenho que calar a voz 
Tenho que encontrar a paz 
Tenho que folgar os nós 
Dos sapatos, da gravata 
Dos desejos, dos receios 
Tenho que esquecer a data 
Tenho que perder a conta 
Tenho que ter mãos vazias 
Ter a alma e o corpo nus 
Se eu quiser falar com Deus 
Tenho que aceitar a dor 
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou 
Tenho que virar um cão 
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos 
Suntuosos do meu sonho 
Tenho que me ver tristonho 
Tenho que me achar medonho 
E apesar de um mal tamanho 
Alegrar meu coração 
Se eu quiser falar com Deus 
Tenho que me aventurar 
Tenho que subir aos céus 
Sem cordas pra segurar 
Tenho que dizer adeus 
Dar as costas, caminhar 
Decidido, pela estrada 
Que ao findar vai dar em nada 
Nada, nada, nada, nada 
Nada, nada, nada, nada 
Nada, nada, nada, nada 
Do que eu pensava encontrar 

Gilberto Gil, 1980







Não tem nome



Essa coisa que não tem nome. Essa coisa mágica, esse querer bem, essa vontade de estar perto. Bálsamo benigno, signo, guru e porto seguro. Mar e mãe, medo e champagne, visão do espaço sideral. Fumo e yoga, paixão e carnaval.
Luz e nuvem. O envolvimento de um abraço que faz ver estrelas e conhecer um pedaço do paraíso. Olhos brilhando e sorrisos de crianças. Andanças de mãos dadas pelo mundo. Planos e sonhos. Cuidado na doença, beijo na testa. Defender com unhas e dentes. O telefone que toca pra se ter uma conversa rápida. É aquele carinho de quem levanta cedo só para comprar produtos orgânicos para o outro. E aquela moça ou rapaz que compra um remédio na farmácia sem querer nada em troca.
Respeitar as dores, perguntar se chegou bem em casa, e, melhor ainda, acompanhar no caminho. Deixar na porta de casa. É olhar nos olhos e poder chorar sem medo. Entender que o passado existe, mas que quem ama vive só para o presente. Sonhar com paisagens e viver poemas. Caminhar canções e beijar instantes.
É uma essência divina, uma centelha, é a visão do universo. É maior do que tudo, é espiritual, é alma, coração e tudo que há de mais belo no mundo. Talvez macio, talvez solar, talvez parte da lua. É uma praia deserta e uma mata selvagem. Existe para homens, mulheres, crianças e animais.
Talvez, se os olhos forem fechados, há de se sentir alguma coisa. Talvez um sussurro diga o seu nome em algum sonho bonito. É uma mãe, um irmão, um amigo, um namorado e uma esposa. Existe no sorriso dos filhos que eu ainda terei e nos animais que eu já amo. O cuidado, a ternura, a expressão daquilo que há de melhor no ser no ser humano. Coisa universal, coisa que a gente faz pelos outros só pelo prazer de fazer o bem a alguém, coisa que mora nos olhos de quem ama. Coisa que eu nem sei mais explicar, isso que não tem nome. 

Aos que amam




E quem nunca confundiu um campo árido com um rio sereno? Amor é palavra forte e a busca até ele confunde. Amor é construção? E o amor à primeira vista?  Eu não sei de nada, mas alguma coisa a vida me ensinou. Vida, coisa que, aliás, é sinônimo de dualidade. Tudo no universo respira lados opostos. É a lei.
A vida carrega a morte e amor carrega o desamor. E veja só, o desamor ensina sobre o amor. Das coisas que vi, aprendi que a mente engana e que é fácil achar que se pode mergulhar num rio seco. Vejo o ser humano como uma coisa pequenininha tentando alcançar esse sentimento bom. Há tantos labirintos dentro da mente que amar é uma coisa difícil. A arte dos sentimentos, aquilo que se constrói na infância, os apegos, a noções sobre afetos. O que os pais dão, o que se recebe, o que se cria e o que se sente. Inseguranças, traumas, ansiedades, solidões. O que somos nós. Falo aqui do amor entre duas pessoas. A carga semântica dessa palavra não cabe num texto.
Nascemos sem escolha e aqui estamos. Uns nascem sem saber amar, sem sentir empatia, sem sentir. Outros amam além da conta e outros vivem com serenidade. No final das contas, só dá amor quem o tem dentro de si. Talhar pedras, plantar no concreto e outras coisas não valem a pena. E mesmo assim, continua-se acreditando. E quem está isento? Acredita-se ainda no amor. O chão corta os nossos pés, as palavras machucam os nossos ouvidos, mas amor é isso, não?
Não. Amor é um rio sereno, é um chão macio, é uma cama confortável. Amor é beijo na testa, é a preocupação em saber se o outro chegou bem. Amor é o olhar manso, terno e amoroso de quem nos ama e quer cuidar de nós. Amor é um bilhete carinhoso, é o cuidado com as palavras. Amor é sinceridade. Amor é alma e coração despidos.
Não sei se o amor acaba. Não quero falar sobre os deslizes ou sobre as coisas que dizem o amor suportar. Eu quero somente falar aos que amam. Quero falar sobre as delicadezas que só a coisa mais bonita que há no universo pode nos dar. Que venha o acolhimento.  Aqueles que não sabem amar e juntam as suas inseguranças a uma cultura violenta e imbecil, não aprenderam a buscar dentro de si o dom de acolher. Não aprenderam e não foram ensinados.
Que belo seria enxergar as mulheres com carinho. Ver força na fragilidade feminina e não usar virilidade masculina para oprimir, mas para proteger. Ainda utopia. Não queria falar das coisas tristes, mas, as coisas não andam sozinhas. Fiquemos então com o beijo na testa, isso basta.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Gotas de Sol




Quero falar agora sobre um acalento cotidiano. Nessa vida bruta, mesquinha, cheia de desalentos, existe um abraço que serve para todo mundo. É aquele abraço ameno, morno, que alivia e acalma.
São gotas de sol, gotas que abraçam o corpo no final da tarde. É o sol que não machuca a pele, é o sol que cuida, alivia e regenera. São as gotas que envolvem o corpo, é o calor que acalenta, é aquilo que desfaz o frio. É a luz que faz brotar as sementes, alimenta as plantas e acaricia os animais.
De vez em quando um gato pode ser visto deitado por aí, sentindo a luz, sendo abraçado pelo sol. Os animais sabem das coisas.
Eis o abraço livre, sempre disponível. Um banho morno no meio da rua. Se é livre, existe para os presos e para todas as retinas. Às crianças e aos idosos, a todos os animais, às células, às plantas e à vida. Para tudo, gotas de Sol. 


domingo, 20 de março de 2016

Fluxo


Acorda cedo e pega o ônibus lotado, são 40 minutos para chegar aonde quero. É de manhã e não importa se chove ou se faz calor, é tudo um inferno. É dia de estudar alemão. Wie heissen Sie? Oi? Calma. A minha idade? Ah... deixa eu ver aqui como se diz, acho que é einsundzwanzig.  Por favor, professor, não me pede pra ler esse negócio.
Tem o Timeu de Platão para traduzir. E eu entendo alguma coisa? Ah, já fez a parte de Cícero? É, eu tentei, mas não deu tempo de fazer tudo. Eu cochilei de tarde. Chego na aula e me perguntam se eu to achando difícil. Eu, ingênua balanço a cabeça, digo que sim. Escuto que estou mentindo. Um alvoroço começa na sala, todo mundo quer falar. Eu até defendo meu ponto de vista, mas sei lá, tenho preguiça, vai ver to mentindo mesmo. Quer dizer, é mentira mesmo, ok. Próximo.
Acordei enjoada hoje, não acredito. Minha cabeça tá doendo, não acredito. O que é isso? Deve ser o remédio que eu to tomando. E vamos lá outra vez. Cólicas, dores pelo corpo e, pelo meu humor, eu posso matar uma pessoa a qualquer momento. Juro que vou ficar quietinha na aula de hoje. Quando o professor disser pra eu responder mais alto eu juro que não vou dizer: tá bom, da próxima vez eu grito. Por que diabos eu disse isso? Meu Deus...
Hoje vamos aprender o Aoristo. Eu traduzo no presente ou no passado? Mas ele não é um tempo, é um aspecto. Depende. Olha, se for uma narrativa é passado, o que importa é o momento. Professor o particípio dá ideia de anterioridade, né? O particípio aoristo, ele me corrige. Tudo bem... É igual ao ablativo absoluto, que também é igual ao genitivo absoluto. O quê? Repete por favor. Quem diz que entendeu está mentindo. E eu disse que entendi. Olha eu mentindo outra vez.
Perdi três aulas essa semana por causa dos enjoos. Vou ao médico, e ele me diz que sou enjoada. Doutor, ainda bem que você não pode ler meus pensamentos, viu? Realmente eu fiquei muito enjoada, mas foi por causa desse maldito remédio que o senhor passou. Ah, existem problemas piores que o meu? E as aulas que eu perdi? Até nunca mais seu... Calma, querida, não chora. Quer saber, vou comprar umas coisas gostosas para comer e escutar Led Zeppelin, vai ajudar. Nossa, e esse tanto de coisas para arrumar aqui? É, vou ter que sair do alemão.
Que pena, eu estava gostando do professor e fazendo amizade com o pessoal da sala. Só que tem as duas extensões, e as disciplinas, e a dúvida entre Sêneca e Horácio. Pra que comprar livros sobre Marco Aurélio e depois descobrir que o cara, um imperador romano, escreveu em grego? Só pra gastar a mesada mesmo. Depois eu leio. Professor, responde meu e-mail, por favor. Então, escolha Horácio mesmo. Certo, caça aos artigos. Professor, como se traduz um partícipio futuro passivo? Como se traduz um subjuntivo? Tudo no presente. São mais de 50 formas de verbos. Ok. 
Mudou o documento do estágio, agora tem que assinar tudo de novo. Segunda esteja na coordenação. Professor querido assina aqui, por favor?  Oi, me ajuda no Latim. Bom, como está o seu levantamento? Ah, vamos ver os casos aqui. Ver tudo de novo? É, de novo... Olha você sabe bastante latim. Na outra semana: você não sabe de nada, aquilo era um ablativo absoluto. Como alguém chega no latim VI desse jeito?  Mas toma essas folhas aí, e o meu texto e faz o levantamento pra mim. Oi? Desculpa, mas não dá. Não dá mesmo. E quem é aquele rapaz passando no corredor? Acorda menina, foco.
Meus dois gatos não param de brigar. É uma agonia constante, e de repente, às três da manhã, uma amiga me liga e eu penso que o mundo acabou. Mas não acabou não, ela só não sabia que rapaz beijar. Ai que saudade desse tipo de dúvida. Amiga, olha só, eu to com dor de cabeça, minha vida tá uma bagunça, mas, beija aí quem você quiser, aproveita a vida. Amo você, beijos. E amo mesmo, o que seria da vida se não fossem os amigos?

sábado, 19 de março de 2016

Dançando com peixes


O mistério dos peixes é o mesmo mistério que mora em mim. É o meu ascendente, é a minha essência e é tudo aquilo que eu abomino com todo meu coração. É um vício louco, é uma droga, é o que me faz perder os sentidos e errar de caminho. É o mergulho mais insano e o amor mais odiado.
Etéreo, onírico, misterioso, turvo e cristalino. Toma o meu coração e faz dele o que deseja. Ilude. A única criatura que me ilude. A única criatura que consegue me enganar, a única criatura que me fere com um sorriso no rosto.
Aquela criatura que promete amor e some com a mesma rapidez com que apareceu. É aquele ser maldito que surgiu em minha vida, me encheu dos piores sentimentos e mesmo depois de ter ido embora invadiu meus sonhos, destruiu o meu ego e passou por mim com uma gargalhada infernal.
Exatamente por ser aquilo que não consigo desvendar, é o ser que mais me fascina. Meus olhos brilham quando vejo a sua dança. Quero dançar também, esqueço de tudo. E de repente, estou em sua teia outra vez. A teia de mentiras mais bem construída que já observei. Nesses mergulhos eu vivi as histórias mais estranhas de que posso me lembrar.
Ópio, vinho, ódio, ilusão. Os piores medos, a maiores angústias, as grandes ilusões, as maiores dores. Meu reflexo nas águas, meu maior oponente. Tudo se afoga dentro de mim. Eu não quero mergulhar de novo, eu tenho medo. O canto da sereia me chama outra vez, mas eu sei de tudo o que acontece, também sou filha das águas. Minha essência é escorpiana, não se engane com a minha balança. Com tanto ódio por um signo, eu não posso acreditar no seu oposto. Eu só não sei por que o destino insiste em me fazer mergulhar de novo.  

domingo, 6 de março de 2016

Chuva para dois


Um casal desses que a gente vê pelas paradas de ônibus, numa moto, num passeio no shopping, andando pelas ruas do centro da cidade e até na sala de uma faculdade. Eles moram numa casa simples no Rangel. Foi a casa que puderam comprar.
A vida sempre difícil os levou para caminhos distintos daqueles que sonharam. Só o amor dos dois alivia as desilusões da vida. Sair da casa dos pais para morar juntos foi a coisa mais audaciosa que fizeram, e a melhor. A vida é difícil e o dinheiro só é suficiente para as contas primordiais. Querem ter profissões diferentes e morar em outro bairro. Comprar uma casa bem maior não seria mal. Enquanto isso não acontece eles sonham e lutam.
A volta do trabalho é uma das piores partes do dia: ônibus lotado, gente suada e um aperto infernal. De vez em quando Kayllany olha pela janela e sente inveja dos carros ao lado. Dane-se o trânsito, bom mesmo é estar sentada dentro de um automóvel e não nesse aperto. Enquanto isso, Denilson pilota a sua moto e cruza entre os carros querendo chegar na faculdade na hora.
Depois das aulas na faculdade, os dois chegam em casa. Cansados, só querem dormir, mas, o amor não dorme. Apesar das dificuldades, nada supera a felicidade de pôr os pés em casa depois de um dia exaustivo, mesmo quando o teto é de telha, as paredes são finas e os móveis são simples. O importante mesmo é ter um lar acolhedor.
Bonito é quando chove. É possível que as gotas da chuva sejam sentidas mesmo dentro de casa. São pingos finos e discretos.  Nas madrugadas chuvosas, o corpo de quem se ama parece adquirir novos contornos de desejo, principalmente debaixo de um lençol quente. O único lugar para se abrigar é no corpo um do outro. Para eles, não há nada melhor do que dormir aquecidos num abraço infinito, ainda que sintam os pingos da chuva.
Parece até que a casa simples deixa as coisas surpreendentemente mais bonitas. Não fossem as telhas, o abraço não teria tanta graça. Quando amanhece o quarto fica num tom de azul que não posso explicar. As cores e sensações que moram nessa simplicidade são únicas.
Já são cinco da manhã e lá fora está frio. O orvalho pode ser sentido mesmo com a janela fechada e aí eles precisam despertar. Os pássaros cantam lá fora, mas dentro do quarto os corpos ainda se procuram. Luz azul, frio, orvalho, amanhecer, pássaros cantando e o amor sonolento dos casais que se amam. O dia chama, eles precisam trabalhar. Janela aberta, clima da madrugada e café da manhã. A casa é simples, mas guarda em si uma magia que só o amor desvenda.  

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A rosa da semana


Sábado é a minha rosa da semana. São estrelas, conselhos, meditações, rosas e energias. Vibrações e sensações que não posso explicar. Vejo brilho em todos os cantos e ao mesmo tempo não vejo nada.
As primeiras rosas que colhi estavam num jardim cheio de pedras. Eu estava num lugar lindo, com árvores e lugares para meditar. Quando anoitecia eu guardava as estrelas dentro de mim e ia dormir feliz. Ali eu fui lua e deixei o meu coração conhecer uma felicidade que ainda não tem nome. Os domingos de missa e praia à noite eram um complemento daquilo que o sábado era.
Com medo da alegria eu fugi, e aí, a alegria fugiu de mim também. Então um presente chegou em minhas mãos outra vez. Sábado ainda é a rosa da semana. Dessa vez, era um lugar pequeno com paredes azuis. O meu coração começava a se sentir cheio, mas esse ainda não era o meu lugar.
Eu me entrego e confio. Outras flores brotaram para mim. São rosas e lírios. É possível que existam outras flores e que eu ainda não as tenha visto. Eu descobri que posso ser feliz de novo. Por muito tempo eu quis retornar ao jardim, por muito tempo eu quis voltar no tempo. Eu fechava meus olhos e acreditava que realmente voltaria... 
Não voltei, mas o meu coração está aberto e eu consigo guardar as estrelas dentro de mim, como antes. É um lugar azul, cheio de coisas invisíveis. O meu corpo não é mais o meu corpo. Há milhares de coisas além de mim, coisas com as quais eu converso. A minha dança é leve e o sorriso toma o meu rosto. Alguém segura as minhas mãos, e eu apenas escuto.
Os meus passos eu deixo numa estrada azul. Tudo o que vejo são coisas invisíveis e essas são as coisas mais lindas que eu posso enxergar. Tudo isso é quem eu fui, quem eu sou e quem eu serei. A minha essência é antiga e o meu coração é milenar. Um dia me mostraram as estrelas e eu me joguei num abismo, foi então que eu caí outra vez nessa estrada azul. Olhando para trás, eu percebo que não posso enxergar o início dessa estrada, e tudo o que sou agora, é só uma parte do caminho.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

No dia em que choveu



Um outro país, um outro lugar. Aqui estou eu, passando por entre estranhos, mas sabendo que a estranha sou eu. Vejo rostos a passar por mim. De onde são? Quem são? Não sei se são daqui ou se, assim como eu, estão só de passagem. Esse mundo não é meu.
O meu rosto é só mais na multidão. Sinais, carros, fumaça, sol e pessoas. Preciso chegar na hora. Abro a porta e você é a primeira pessoa que vejo.  Você olha pra mim e nós sorrimos. Então, seguimos em direções opostas. Quem é você? Não sei o seu nome, ou se o seu rosto aparacerá em meus sonhos algum dia. Estás de passagem? Alguém te espera em tua chegada? Continuo o meu caminho.
Ao meu redor estão livros empoeirados e um estrondo forte me assusta. São trovões. Preciso ir para algum lugar seguro. O dia antes ensolarado fica cinza e a chuva assusta. Paro em algum lugar e espero a chuva passar. Sinto o vento forte e penso que talvez eu adoeça, mas aí lembro que já estou doente. Talvez o vento até me ajude a respirar melhor. É, estou respirando melhor mesmo. Não sei de mais nada. Observo a chuva e como tudo é lindo. Não sei se são as folhas voando, ou as árvores balançando, ou a chuva. Lembro do seu rosto mais uma vez. Eu não sei nada da vida, e não sei nada da chuva, a única coisa que eu sei, é que choveu no dia em que te vi. 


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Para quando ela voltar



Numa aldeia cercada de campos e montes, sem tempo e longe de tudo, um romance aconteceu. Leal é um dos personagens que viveu esse romance, a mulher que o fez sonhar foi-se embora no dia em que os dois se casariam. Ele quase enlouqueceu, quis morrer, esteve entregue à dor, de modo que hoje o seu coração quase não bate e é cheio de cicatrizes. É como um Florentino Ariza sem esperanças.
Dora é o nome da mulher que ele tanto amou. A história dos dois é antiga e acinzentada. Quando foram coloridos, tinham 16 anos de idade. Conheceram-se na escola da aldeia em que viviam. O alvoroço do primeiro amor tomou conta dos dois. Amavam com total intensidade, tudo ao redor era magia plena. Viviam esse amor em cenários quase oníricos. Tinham um caderno no qual escreviam um para o outro tudo o que sentiam. Brigavam e se adoravam. Até que os anos foram passando e Leal perdera o carinho de sempre. Dora sofria com isso. Sofria com a pressão, com as mudanças de humor, com a falta de compreensão, com a aparente frieza e com o gosto dele pela bebida.
Ela tentou conversar, tentou fazê-lo entender, pediu para que ele não bebesse tanto, mas, ele não mudou. E ela foi embora com outro. O jovem homem não assimilou a ausência e esperou que ela voltasse. Na casa em que ele havia construído para os dois, tudo era escuro. A sua fuga era o trabalho, e tudo o que ele fazia era esculpir santos e outras figuras. Até que um dia ela voltou, bateu à porta e o acordou. Surpreso, ele achou que era uma volta, mas era uma despedida. Conversaram e pela última vez se amaram com a mesma intensidade de antes. Encostado à porta, ele viu ela indo embora pela rua. Quis correr, mas não conseguia. Não sabia que seria a última vez. 
Nos dias seguintes, ele esperava que alguém batesse à porta outra vez, mas tudo era silêncio. E é aí que a saga do coração começa: foi quando ele entendeu que ela não voltaria mais. O apetite fora perdido, e os dias eram divididos entre choro e sono. Geralmente acordava de madrugada e a primeira coisa que pensava era: Dora não está mais comigo.
A pior noite foi quando sonhou com ela. Estavam os dois sozinhos numa praia deserta e enluarada. Havia um píer para o mar e vários lugares altos sobre a areia. Então ele escalou a areia e a encontrou lá, sentada, observando a enorme lua cheia. Pôde abraçá-la. Foi tão real que o rapaz acordou com os olhos cheios de lágrimas e passou a madrugada insone. Os olhos abertos no escuro da casa. Não sabia se rezava ou se morria. 
Meses passaram e a vida parecia voltar ao normal. Agora Leal queria se jogar nos braços de outras mulheres e sentir outros corpos. No entanto, sempre se lembrava de Dora. Eram os olhos azuis e grandes, os cabelos loiros, o corpo esguio, o lindo sorriso, a magia que havia em torno dela e tudo o que ela representava. Para ele, ela era o Sol da sua vida. E, perdido, entre lembranças, pintou um lindo quadro de Sol e o colocou em sua sala. Assim nunca esqueceria dela.
 Até que reencontrou o Sol numa rua da vila. Ela sorriu, mas virou o rosto e foi embora mais uma vez. Estava diferente, e parecia estar grávida! Ele não podia acreditar, que, alguns meses depois de tê-lo visitado, ela já estaria grávida! Isso precisava ser confirmado. Outra pequena morte acontecia em seu coração. Então foi conversar com as antigas amigas de Dora para saber o que havia acontecido.
Descobriu que ela havia encontrado outro amor e morava numa vila muito, muito distante. Estava de volta apenas para visitar a família. Outra vez lágrimas. Como era possível ela ter esquecido aquele amor? Era possível? Então ele escreveu uma carta para ela contando todas as suas agruras. Tinha esperança de que, se contasse tudo o que sentia, poderia esquecê-la de uma vez. A resposta veio clara e dolorida. Sim, ela era feliz. Sim, ela também havia sofrido, no entanto, já encontrara outro amor, vivia um outro momento de sua vida e realmente estava grávida! O amor antigo fora esquecido e guardado em seu devido lugar. Louco, Leal ainda escreveu outras cartas, mas não teve respostas. Respostas que ele esperou avidamente. 
Não havia mais o que fazer. Ela não voltaria nunca mais. Tudo o que lhe restava eram memórias e sonhos. Havia semanas que sonhava com ela todos os dias, acordava entre feliz e aturdido. Em outros momentos, o perfume que ela usava vinha em sua memória. Tudo o que tinha era uma caixa com fotografias, poemas, uma aliança antiga e vidros de perfume. Apenas uma caixa. Ele sabia que parecia louco e já não aguentava mais. Ele deixou outras mulheres entrarem em sua vida. Se apaixonava, gostava delas, mas sempre, sempre sentia que as estava enganando. Não achava justo ser amado e ao mesmo tempo não ter o coração livre. E assim ele sofria mais uma vez.
Acendia velas, rezava, procurava oráculos. Tudo para esquecer. Queria ser feliz e amar. Com o tempo a memória foi se acalmando, e a chama antes forte, agora era branda. Esse amor era como fogo. Às vezes ficava forte e o consumia, e às vezes o deixava em paz, mas nunca era apagado. Muitas vezes, quando passeava, não conseguia sequer esquecer as ruas pelas quais havia passeado com ela. Lembrava até do vestido florido e sentia raiva de si mesmo por lembrar e por não ter sido o homem que Dora merecia que ele fosse. Se pudesse, apagaria tudo da memória.
Deus não era justo. Como ela poderia amar alguém e ele não? Porque somente a ela foi dada a dádiva do esquecimento? O que lhe faltava para esquecer? E assim, foi se acomodando. Já estava acostumado com as pedras do peito e com o espaço sempre ocupado em seu coração. Desistiu de brigar com Deus e com o mundo, amava mesmo era a solidão. Sabia que viveria assim até o fim dos seus dias.
Um dia, viu duas crianças sozinhas na rua. Um menino, Francisco, e uma menina, Clara. Estavam sujas e assustadas. Ele conversou com elas e descobriu que eram órfãos e estavam fugindo dos maus tratos de uma tia. Vieram parar ali porque já estavam sem forças para andar. Comovido, deu abrigo para as crianças. O tempo passou e eles foram ficando. Os três foram construindo um laço de amor genuíno e em pouco tempo Leal já era chamado de pai. Faria tudo por aquelas crianças e as amava como se fossem seus filhos.
Clara não parava de olhar para o quadro de Sol. Dizia que aquele quadro a fazia lembrar de sua mãe. O que era uma surpresa para Leal, porque os meninos não conseguiam falar de suas origens. Até que disseram o nome de sua mãe: Dora. Uma mãe linda como o Sol. Ela morreu e eles ficaram sob os cuidados de uma tia, que era uma mulher terrível. Lembraram também que sua mãe falava que o verdadeiro pai deles era um homem muito bom, que era o único homem que havia amado de verdade e que estava muito longe deles. Leal apenas sorriu e pensou: de alguma forma, ela voltou. Envelheceu feliz, porém nunca mais amou uma mulher novamente.



Agora vamos ter os girassóis do fim do ano e o calor vem desumano
Tudo irá se expandir, crescer com as águas. Quiçá, amores nos corações
E um santeiro, milagreiro prevê a dor de terceiros e diz que a vida é feita de ilusão
Aquela que um dia o fez sonhar se foi com o outro
No dia em que os dois se casariam por amor
Ele aluou. Hoje o seu pesar cintila nos varais
Usou as sete vidas e não foi feliz jamais
Toda a imensidão passou pela vida e foi cair na solidão
Mais um santo para esculpir é o que lhe vale pra evitar que o rancor suas ervas espalhe

Milagreiro - Djavan
               



domingo, 17 de janeiro de 2016

Uma Janela para Aurélia


Em algum lugar do interior da Paraíba vivem Aurélia e Jesuíno. Um lugar na Borborema, mistura de Cariri e Seridó. Paisagem ora seca, ora verde. Montes ao redor, céu azul quase todo dia e uma imensidão de encher os olhos.
No lugar em que vivem, as casas são próximas, formam quase uma vila. Esse lugar não é nem perto nem longe da cidade. O interior já não tem o aspecto bucólico e tranquilo de antes. Os jovens mantêm um certo brilho nos olhos, um brilho que só gente simples e feliz tem, mas já conhecem as artimanhas do mundo através da internet e perderam a inocência que seus pais tinham quando possuíam a mesma idade que eles.
Lugar em que todo mundo se conhece. Tem bar, mercearia, luz, internet e telefone. A escola fica um pouco mais longe, e a água também não é coisa muito fácil, mas eles sempre dão um jeito e todo mundo vive tranquilo a seu modo. A violência ainda não chegou ali, ainda bem.
Aurélia e Jesuíno são simples e calados. Se olham desde quando floresceram para o amor, mas nunca chegaram a ter coragem de abrir seus sentimentos. Ela anda com as amigas, fofoca, sorri, e no mais é feliz. Só que dentro dela mora uma complexidade enorme, difícil de ser explorada. A moça nunca dorme cedo, e desde que fez 16 anos adquiriu o hábito de passar as madrugadas acordada escutando alguma música. A janela do seu quarto está sempre acesa, mas, com uma certa penumbra, porque para ela não existe nada mais confortável do que a luz de um abajur. Pele morena, cabelos grandes, olhos grandes e uma cabeça pensante. Quase romântica e quase racional. Ela quer amar e o amor lhe devora nas madrugadas, quando a sua cabeça lembra de Jesuíno. Estudam juntos, e ela gasta as manhãs flutuando entre as aulas e os olhares para ele.
Jesuíno é alto, moreno e tem os cabelos cacheados. É espontâneo, sorridente, mas é leonino e sabe ser silencioso. Não deixa Aurélia perceber os seus olhares. E dentro dele ferve uma paixão por ela. Ele que já esteve com outras meninas, não a imagina de maneiras vulgares, e sem saber, está a um passo do abismo do amor. Ele é tão complexo quanto a moça por quem é apaixonado. Lê muito, e tantos assuntos variados o interessam, que ele passa horas do seu dia perdido em leituras. Filosofia, Fernando Pessoa,  política e o que mais aparecer. Os dois são figuras distintas no lugar em que vivem. A maioria dos amigos dos dois tem a cabeça nas nuvens ou em trivialidades.
Ambos moram em casas próximas e as suas famílias se conhecem desde sempre. Perto do quarto de Aurélia existe uma árvore e menina gosta de passar horas olhando para ela. Um dia, a insônia chegou em Jesuíno, e ele quis sair pelas ruas desertas do vilarejo. Estava triste, cheio de indagações e gostava de se arriscar, e nesse passeio percebeu a janela do quarto de Aurélia com uma certa luz. Aproximou-se da janela com cuidado, e percebeu a menina deitada na cama e pôde escutar um som baixinho. O coração dele acelerou...

Uma Janela para Aurélia - II


Por outro lado, Aurélia percebeu uma presença perto dela. É que na vida real, sempre é possível sentir quando alguém se aproxima. Talvez o calor, a energia, enfim. Se tem alguém perto, sempre é possível saber. E ela deitou-se na cama. E pensou: E agora, meu Deus, e agora? Preciso fechar essa janela. E como quem nada queria, sem fazer alarde, para não assustar a assombração, ou o que quer que fosse, ela levantou devagar, e fechou a janela com cuidado. Como tinha medo, não queria olhar se tinha alguém embaixo. Mas, depois de fechada a janela, atreveu-se a olhar pela a brecha, e viu a imagem de Jesuíno olhando para o céu, sentado embaixo de sua árvore preferida. Seu coração acelerou, e, para não espantar o rapaz, manteve a luz acesa e tudo como antes. Agora ela o observava e pensava: "Que danado esse menino faz aqui essa hora? Ele tá é doido". Num misto de medo e curiosidade, desejou que isso se repetisse todas as noites...
O rapaz por sua vez, não tinha certeza se ela tinha percebido ou não, mas também não quis fazer alarde ou assustá-la. “Ela pensaria que sou um louco!”. E sentou-se embaixo da árvore. No fundo, queria era estar dentro daquele quarto, compartilhando a insônia com Aurélia. E assim, ao longo dos dias, ele resolveu aproximar-se dela como quem não quer nada, pois, sentia-se arrependido por sua curiosidade. “Imagine o que ela pensaria de mim se soubesse o que fiz? Se ao menos nos tornássemos próximos...”, e ela, também quis aproximar-se. Quem sabe assim entenderia o motivo daquela presença noturna. 
       No dia seguinte o jovem ofereceu-lhe um bombom e tentou conversar sobre música. Coisa rápida, mas para os dois, aquilo já era suficiente para plantar dúvidas e curiosidades. Uma nova madrugada, e a curiosidade chegou nele: “Será que ela está acordada outra vez?”. E mais uma vez foi até ela, e ela, esperta, sentiu a presença dele. Conseguiu vê-lo por uma brecha. E então, apesar da confusão dentro de si, ela soube do amor. Quem era a caça? Quem caçava?
        De dia a amizade crescia, e de noite, Jesuíno procurava aquela janela, e a moça da janela ansiava por ele. Até que Aurélia lhe disse: - Jesuíno, eu sei que você fica em minha janela. Pare com isto, estou cansada.- O rapaz ficou pálido, sentiu o coração parar, e respondeu: -Você, você.... Por favor! Não é por mal! Desculpe! Eu não... não sei o que dizer-. -Apois não diga. Quero entender o que acontece. Eu amo você e quero você em meu quarto, e não apenas em minha janela.- E os dois conversaram muito até entenderem o que de fato acontecia durante as visitas de Jesuíno e o que fez essa história se desenrolar.
       De noite Jesuíno voltou à janela, mas, dessa vez Aurélia estava lá, olhando para a rua, à sua espera. E ele pulou a janela e estava no quarto da moça. A música ainda estava lá e pela primeira vez os dois se beijaram. O hábito de se verem continuou, e, com isso a paixão crescia. E os dois iam devagar e juntos. Era a primeira vez que amavam. Ela ainda era virgem e ele já conhecia o corpo de outras moças, mas, mesmo assim, o amor era uma novidade no coração desse rapaz. Um dia, Aurélia tirou a blusa e o sutiã, e Jesuíno, assustado e bobo, disse-lhe: Aurélia, eu sei que você nunca esteve com um homem, vamos fazer isso devagar, porque eu quero que você se acostume com um corpo masculino.- E ele ficou admirado com os seios dela. Seios perfeitos, dois semicírculos, nunca vira um par tão lindo. Para ele eram como duas luas no corpo da mulher que amava.
         Até que resolveram admitir o namoro para todo mundo. Agora ele pode entrar pela porta, mas a folia das madrugadas se perdeu. E, segundo as regras dos pais dela, ele não pode dormir lá, então, não têm mais as noites juntos. Só que de vez em quando, a saudade do começo do namoro aperta e eles combinam quando ele irá pular a janela só pela alegria de se verem quando o mundo dorme. Quando casarem, e tiverem filhos, a janela continuará ali, no coração deles. E quando dividirem o mesmo quarto, e não for preciso pular mais nada, a madrugada ainda pertencerá aos dois.


Nos braços de uma morena
Quase morro um belo dia
Ainda me lembro o meu cenário de amor
Um lampião aceso, um guarda-roupa escancarado
Um vestidinho amassado embaixo de um batom
Um copo de cerveja, uma viola na parede
E uma rede convidando a balançar
No cantinho da cama um rádio a meio volume
Cheiro de amor e de perfume pelo ar
[...]
Que tentação
Minha morena me beijando
Feito abelha
E a lua malandrinha
Pela brechinha da telha
Fotografando o meu cenário
De amor

Petrúcio Amorim. Meu cenário 



                

sábado, 16 de janeiro de 2016

Uma noite sem você


Uma estrela brilha na brecha da noite
Clareando o calabouço da minh' alma
No escuro e sem você eu perco a calma
Hora amarga que me encharca em seu açoite
A paixão me esquartejando com sua foice
E a garganta vomitando um grito rouco
Chamei tanto que eu quase fico louco
Quis mostrar um pouco do meu sentimento
Que uma noite sem você é muito tempo
E uma vida com você é muito pouco.
A saudade incendiando a madrugada
No silêncio queima a chama da alegria
Inda lembro de você naquele dia
Me beijando, me dizendo que me amava
Te amei tanto que eu não imaginava
Que sozinho ficaria triste e oco
Quando o mundo me chamava eu tava mouco 
Galopando no vagão do pensamento
Que uma noite sem você é muito tempo
E uma vida com você é muito pouco.

- João Linhares


-Rita Benneditto

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Noite Severina


Corre calma, severina noite
De leve no lençol que te tateia a pele fina
Pedras sonhando pó na mina
Pedras sonhando com britadeiras
Cada ser tem sonhos à sua maneira
Cada ser tem sonhos à sua maneira
Corre alta, severina noite
No ronco da cidade, uma janela assim acesa
Eu respiro o teu desejo
Chama no pavio da lamparina
Sombra no lençol que te tateia a pele fina
Sombra no lençol que te tateia a pele fina
Ali, tão sempre perto, e não me vendo
Ali sinto tua alma a flutuar do corpo
Teus olhos se movendo, sem se abrir
Ali, tão certo e justo e só ti sendo
Absinto-me de ti, mas sempre vivo
Meus olhos te movendo sem te abrir
Corre solta suassuna noite
Tocaia de animal que acompanha a sua presa
Escravo da sua beleza
Daqui a pouco o dia vai querer raiar
Daqui a pouco o dia vai querer raiar...

-Noite Severina. Lula Queiroga